XIV : O PRISIONEIRO

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Quando os selvagens se precipitavam sobre o inimigo, que já não se defendia e se confessava vencido, o velho cacique adiantou-se; e deixando cair a mão sobre o ombro de Peri, fez um movimento enérgico com o braço direito decepado.

Esse movimento exprimia que Peri era seu prisioneiro, que lhe pertencia como o primeiro que tinha posto a mão sobre ele, como seu vencedor; e que todos deviam respeitar o seu direito de propriedade, o seu direito de guerra.

Os selvagens abaixaram as armas e não deram um passo; esse povo bárbaro tinha seus costumes e suas leis; e uma delas era esse direito exclusivo do vencedor sobre o seu prisioneiro de guerra, essa conquista do fraco pelo forte.

Tinham em tanta conta a glória de trazerem um cativo do combate e sacrificá-lo no meio das festas e cerimônias que costumavam celebrar, que nenhum selvagem matava o inimigo que se rendia; fazia-o prisioneiro.

Quanto a Peri, vendo o gesto do cacique e o efeito que produzia, a sua fisionomia expandiu-se; a humildade fingida, a posição suplicante que por um esforço supremo conseguira tomar, desapareceu imediatamente.

Ergueu-se, e com um soberbo desdém estendeu os punhos aos selvagens que por mandado do velho se dispunham a ligar-lhe os braços; parecia antes um rei que dava uma ordem aos seus vassalos, do que um cativo que se sujeitava aos vencedores; tal era a altivez do seu porte e o desprezo com que encarava o inimigo.

Os Aimorés, depois de ligarem os punhos do prisioneiro, o conduziram a alguma distancia à sombra de uma árvore, e ai o prenderam com uma corda de algodão matizada de várias cores a que os Guaranis chamavam muçurana.

Depois, ao passo que as mulheres enterravam os mortos, reuniram-se em conselho, presididos pelo velho cacique, a quem todos ouviam com respeito e respondiam cada um por sua vez.

Durante o tempo que os guerreiros falavam, a pequena índia escolhia os melhores frutos, as bebidas mais bem preparadas, e oferecia ao prisioneiro, a quem estava encarregada de servir.

Peri, sentado sobre a raiz da árvore e apoiado contra o tronco, não percebia o que se passava em torno dele; tinha os olhos fitos na esplanada da casa que se elevava a alguma distancia.

Via o vulto de D. Antônio de Mariz que assomava por cima da paliçada; e suspensa ao seu braço, reclinada sobre o abismo, Cecília, sua linda senhora, que lhe fazia de longe um gesto de desespero; ao lado Álvaro e a família.

Tudo o que ele havia amado neste mundo ali estava diante de seus olhos; sentia um prazer intenso por ver ainda uma vez esses objetos de sua dedicação extrema, de seu amor profundo.

Adivinhava e compreendia o que sentia então o coração de seus bons amigos; sabia que sofriam vendo-o prisioneiro, próximo a morrer, sem terem o poder e a força para salvá-lo das mãos do inimigo.

Consolava-o porém essa esperança que estava prestes a realizar-se; esse gozo inefável de salvar sua senhora, e de deixá-la feliz no seio de sua família, protegida pelo amor de Álvaro.

Enquanto Peri, preocupado por essas idéias, enlevava-se ainda uma vez em contemplar mesmo de longe a figura de Cecília, a índia de pé, defronte dele, olhava-o com um sentimento de prazer misturado de surpresa e curiosidade.

Comparava suas formas esbeltas e delicadas com o corpo selvagem de seus companheiros; a expressão inteligente de sua fisionomia com o aspecto embrutecido dos Aimorés; para ela, Peri era um homem superior e excitava-lhe profunda admiração.

Foi só quando Cecília e D. Antônio de Mariz desapareceram da esplanada, que Peri, lançando ao redor um olhar para ver se a sua morte ainda se demoraria muito, descobriu a índia perto dele.

O Guarani (1857)Where stories live. Discover now