IX : TESTAMENTO

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No momento em que Cecília deixou Isabel, D. Antônio de Mariz subia a esplanada, preocupado por algum objeto importante, que dava à sua fisionomia expressão ainda mais grave que a habitual.

O velho fidalgo avistou de longe seu filho D. Diogo e Álvaro passeando ao longo da cerca que passava no fundo da casa; fez-lhes sinal de que se aproximassem.

Os moços obedeceram prontamente, e acompanharam D. Antônio de Mariz até o seu gabinete d'armas, pequena saleta que ficava ao lado do oratório, e que nada tinha de notável, a não ser a portinha de uma escada que descia para uma espécie de cava ou adega servindo de paiol.

Na ocasião em que se abriram os alicerces da casa, os obreiros descobriram um socavão profundo talhado na pedra; D. Antônio como homem previdente, lembrando-se da necessidade que teria para o futuro de não contar senão com os seus próprios recursos, mandou aproveitar essa abóbada natural, e fazer dela um depósito que pudesse conter algumas arrobas de pólvora.

O fidalgo achara ainda uma outra grande vantagem na sua lembrança; era a tranqüilidade de sua família, cuja vida não estaria sujeita a um descuido de qualquer doméstico ou aventureiro; porque no seu gabinete d'armas ninguém entrava, senão estando ele presente.

D. Antônio sentou-se junto da mesa coberta com um couro de moscóvia e fez sinal aos dois moços para que se sentassem a seu lado.

– Tenho que falar-vos de objeto muito sério, de objeto de família, disse o fidalgo. Chamei-vos para me ouvirdes como em uma coisa que vos interessa e a mim antes do que a todos.

D. Diogo inclinou-se diante de seu pai; Álvaro imitou-o, sentindo um sobressalto ao ouvir aquelas palavras graves e pausadas do velho fidalgo.

– Tenho sessenta anos, continuou D. Antônio; estou velho. O contato deste solo virgem do Brasil, o ar paro destes desertos, remoçou-me durante os últimos anos; mas a natureza reassume os seus direitos; e sinto que o antigo vigor cede a lei da criação que manda voltar à terra aquilo que veio da terra.

Os dois moços iam dizer alguma doce palavra como quando procuramos iludir a verdade àqueles a quem prezamos, esforçando por nos iludirmos a nós próprios.

D. Antônio conteve-os com um gesto nobre:

– Não me interrompais. Não é uma queixa que vos faço; é sim uma declaração que deveis receber, pois é necessária para que possais compreender o que tenho de dizer-vos ainda. Quando durante quarenta anos jogamos nossa vida quase todos os dias, quando vimos a morte cem vezes sobre nossa cabeça, ou debaixo de nossos pés, podemos olhar tranqüilos o termo da viagem que fazemos neste vale de lágrimas.

– Oh! nunca duvidamos de vós, meu pai! exclamou D. Diogo; mas é a segunda vez em dois dias que me falais da possibilidade de uma tal desgraça; e esta só idéia me assusta! Estais forte e vigoroso ainda!

– Decerto, retrucou Álvaro; dizíeis há pouco que o Brasil vos tinha remoçado; e eu afirmo-vos que ainda estais na juventude da segunda vida que vos deu o novo mundo.

– Obrigado, Álvaro, obrigado, meu filho, disse D. Antônio sorrindo; quero acreditar nas vossas palavras. Contudo julgareis que é prudente da parte de um homem que chega ao último quartel da vida, dispor a sua última vontade, e fazer o seu testamento.

– O vosso testamento, meu pai! disse D. Diogo pálido.

– Sim: a vida pertence a Deus, e o homem que pensa no futuro, deve preveni-lo. E costume encarregar-se isto a um escriba; nem o tenho aqui, nem o julgo necessário. Um fidalgo não pode confiar melhor a sua última vontade do que a duas almas nobres e leais como as vossas. Perde-se um papel, rompe-se, queima-se; o coração de um cavalheiro que tem sua espada para defendê-lo, e seu dever para guiá-lo, é um documento vivo e um executor fiel. Este será pois o meu testamento. Ouvi-me.

O Guarani (1857)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora