I : ARREPENDIMENTO

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Quando Loredano afastou-se de João Feio que o acabava de ameaçar, chamou quatro companheiros em que mais confiava, e retirou-se com eles para a despensa.

Fechou a porta a fim de interceptar a comunicação com os aventureiros e poder tranqüilamente tratar o negocio que tinha em mente.

Nesse curto instante havia feito uma modificação no seu plano da véspera: as palavras de ameaça há pouco proferidas lhe revelaram que o descontentamento começava a lavrar. Ora, o italiano não era homem que recuasse diante de um obstáculo e deixasse roubarem-lhe a esperança, que nutria desde tanto tempo.

Resolveu fazer as coisas rapidamente e executar naquele mesmo dia o seu intento: seis homens fortes e destemidos bastavam para levar ao cabo a empresa que projetara.

Tendo fechado a porta, guiou os quatro aventureiros à sala que tocava com o oratório e onde Martim Vaz continuava a sua obra de demolição, minando a parede que os separava da família.

– Amigos, disse o italiano, estamos numa posição desesperada; não temos força para resistir aos selvagens, e mais dia menos dia havemos de sucumbir.

Os aventureiros abaixaram a cabeça e não responderam; sabiam que aquela era a triste verdade.

– A morte que nos espera é horrível; serviremos de pasto a esses bárbaros que se alimentam de carne humana; nossos corpos sem sepultura cevarão os instintos ferozes dessa horda de canibais!...

A expressão do horror se pintou na fisionomia daqueles homens, que sentiram um calafrio percorrer-lhes os membros e penetrar até à medula dos ossos.

Loredano demorou um instante o seu olhar perspicaz sobre esses rostos decompostos:

– Tenho porém um meio de salvar-vos.

– Qual? perguntaram todos a uma voz.

– Esperai. Posso salvar-vos; mas isto não quer dizer que esteja disposto a fazê-lo.

– Por que razão?

– Por quê?... Porque todo o serviço tem o seu preço.

– Que exigis então? disse Martim Vaz.

– Exijo que me acompanheis, que me obedeçais cegamente, suceda o que suceder.

– Podeis ficar descansado, disse um dos aventureiros; eu respondo pelos meus companheiros.

– Sim! exclamaram os outros.

– Bem! Sabeis o que vamos fazer, já, neste momento?

– Não; mas vós nos direis.

– Escutai! Vamos acabar de demolir esta parede e atirá-la dentro; entrar nesta sala, e matar tudo quanto encontrarmos, menos uma pessoa.

– E essa pessoa...

– É a filha de D. Antônio de Mariz, Cecília. Se algum de vós deseja a outra, pode tomá-la; eu vo-la dou.

– E depois disso feito?

– Tomamos conta da casa; reunimos os nossos companheiros e atacamos os Aimorés.

– Mas isto não nos salvará, retrucou um dos aventureiros; há pouco dissestes que não temos força para resistir-lhes.

– Decerto! acudiu Loredano; não lhes resistiremos, mas nos salvaremos.

– Como? disseram os aventureiros desconfiados.

O italiano sorriu.

– Quando disse que atacaremos o inimigo, não falei claro; queria dizer que os outros o atacarão.

O Guarani (1857)Où les histoires vivent. Découvrez maintenant