XI : NO BANHO

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Descendo a escada de pedras da esplanada Cecília perguntava à sua prima:

– Dize-me uma coisa, Isabel; por que é que tu não falas ao Sr. Álvaro?

Isabel estremeceu.

– Tenho reparado, continuou a menina, que nem mesmo respondes à cortesia que ele nos faz.

– Que ele te faz, Cecília, replicou a moça docemente.

– Confessa que não gostas dele. Tens-lhe antipatia?

A moça calou-se.

– Não falas?... olha que então vou pensar outra coisa! continuou Cecília galanteando.

Isabel empalideceu; e levando a mão ao coração para comprimir as pulsações violentas, fez um esforço supremo e arrancou algumas palavras que pareciam queimar-lhe os lábios:

– Bem sabes que o aborreço!...

Cecília não viu a alteração da fisionomia de sua prima, porque tendo chegado à baixa nesse momento, esquecera a conversa, e começara a brincar com uma alegria infantil sobre a relva.

Mas ainda que visse a perturbação da moça e o choque que ela tinha sentido, decerto atribuiria isso a qualquer outro motivo, menos ao verdadeiro.

A afeição que tinha a Álvaro lhe parecia tão inocente, tão natural, que nunca se lembrara que devia um dia passar daquilo que era, isto é, de um prazer que fazia sorrir, e de um enleio que fazia corar.

Esse amor pois, se era amor, não podia conhecer o que se passava na alma de Isabel; não podia compreender a sublime mentira que os lábios da moça acabavam de proferir.

Quanto a Isabel, temendo trair o seu segredo, tinha arrancado do seu coração cheio de amor, essa palavra de ódio, que para ela era quase uma blasfêmia.

Mas antes isso do que revelar o que se passava em sua alma; esse mistério, essa ignorância que envolvia o seu amor, e o escondia a todos os olhos, tinha para ela uma voluptuosidade inexprimível.

Podia assim fitar horas e horas o moço, sem que ele o percebesse, sem o incomodar talvez com a prece muda do olhar suplicante; podia rever-se em sua alma sem que um sorriso de desdém ou de zombaria a fizesse sofrer.

O sol vinha nascendo.

O seu primeiro raio espreguiçava-se ainda pelo céu anilado, e ia beijar as brancas nuvenzinhas que corriam ao seu encontro.

Apenas a luz branda e suave da manhã esclarecia a terra e surpreendia as sombras indolentes que dormiam sob as copas das árvores.

Era a hora em que o cacto, a flor da noite, fechava o seu cálice cheio das gotas de orvalho com que destila o seu perfume, temendo que o sol crestasse a alvura diáfana de suas pétalas.

Cecília com a sua graça de menina travessa corria sobre a relva ainda úmida colhendo uma gracíola azul que se embalançava sobre a haste, ou um malvaísco que abria os lindos botões escarlates.

Tudo para ela tinha um encanto inexprimível; as lágrimas da noite que tremiam como brilhantes das folhas das palmeiras; a borboleta que ainda com as asas entorpecidas esperava o calor do sol para reanimar-se; a viuvinha que escondida na ramagem avisava o companheiro que o dia vinha raiando: tudo lhe fazia soltar um grito de surpresa e de prazer.

Enquanto a menina brincava assim pela várzea, Peri, que a seguia de longe, parou de repente tomado por uma idéia que lhe fez correr pelo corpo um calafrio; lembrara-se do tigre.

De um pulo sumiu-se numa grande moita de arvoredo que se elevava a alguns passos; ouviu-se um rugido abafado, um grande farfalhar de folhas que se espedaçavam, e o índio apareceu.

O Guarani (1857)Where stories live. Discover now