VI : NOBREZA

337 22 1
                                    

Álvaro ouviu um sibilo agudo.

A bala rogando pela aba rebatida de seu chapéu de feltro cortou a ponta da pluma escarlate que se enroscava sobre o ombro.

O moço voltou-se calmo, sereno, impassível; nem um músculo de seu rosto agitou-se; apenas um sorriso de soberano desprezo arqueava o lábio superior, sombreado pelo bigode negro.

O espetáculo que se ofereceu aos seus olhos causou-lhe uma surpresa extraordinária: não esperava decerto ver o que se passava a dez passos dele.

Peri mostrando nos movimentos toda a força muscular de sua organização de aço, com a mão esquerda segura à nuca de Loredano, curvava-o sob a pressão violenta, e obrigava-o a ajoelhar.

O italiano lívido, com o rosto contraído e os olhos imensamente dilatados, tinha ainda entre as mãos hirtas a clavina fumegante.

O índio arrancou-a, e sacando a longa faca, levantou o braço para cravá-la no alto da cabeça do italiano.

Mas Álvaro tinha-se adiantado e aparou o golpe; depois estendeu a mão ao índio.

– Solta este miserável, Peri!

– Não!

– A vida deste homem me pertence; atirou sobre mim; é a minha vez de atirar sobre ele.

Álvaro ao mesmo tempo que dizia estas palavras armava a clavina, e apoiava a boca na fronte do italiano.

– Ides morrer. Fazei a vossa oração.

Peri abaixou a faca; recuou um passo, e esperou.

O italiano não respondeu; a sua oração foi uma blasfêmia horrível e satânica; as palpitações violentas do coração batiam de encontro ao pergaminho que tinha no seio, e lembravam-lhe o seu tesouro que ia talvez cair nas mãos de Álvaro e dar-lhe a riqueza de que não pudera gozar.

Entretanto, na baixeza dessa alma havia ainda alguma altivez, o orgulho do crime; não suplicou, não disse uma palavra; sentindo o contato frio do ferro sobre a fronte, fechou os olhos e julgou-se morto.

Álvaro olhou-o um instante, e abaixou a clavina:

– Tu és indigno de morrer à mão de um homem, e por uma arma de guerra; pertences ao pelourinho e ao carrasco. Seria um roubo feito à justiça de Deus.

Loredano abriu os olhos; seu rosto iluminou-se com um raio de esperança.

– Vais jurar que amanhã deixarás a casa de D. Antônio de Mariz, e nunca mais porás o pé neste sertão; por tal preço tens a vida salva.

– Juro! exclamou o italiano.

O moço tirou o colar que deva três voltas sobre os ombros, e apresentou a Loredano a cruz vermelha do Cristo que lhe pendia do peito; o aventureiro estendeu a mão, e repetiu o juramento.

– Ergue-te; e tira-te dos meus olhos.

E com o mesmo desprezo e a mesma nobreza, o cavalheiro desarmou a sua clavina; voltou-se para continuar o seu caminho fazendo um sinal a Peri para que o acompanhasse.

O índio, enquanto se passava a rápida cena que descrevemos, refletia profundamente.

Quando ouvira o que diziam há pouco Loredano e seus dois companheiros, quando pelo resto da conversa compreendera que se tratava de fazer mal à sua senhora e a D. Antônio de Mariz, a sua primeira idéia tinha sido lançar-se aos três inimigos e matá-los.

Foi por isso que soltou aquela palavra que revelava a sua indignação; mas imediatamente lembrou-se que ele podia morrer, e que nesse caso Cecília não teria quem a defendesse. Pela primeira vez na sua vida teve medo; teve medo por sua senhora, e sentiu não possuir mil vidas para sacrificá-las todas à sua salvação.

O Guarani (1857)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora