Cheguei à casa dos Fernandes depois deles. Rever Fernanda foi uma grande alegria. Ela me deu um abraço longo e apertado e me cobriu de beijos. Me senti protegida novamente, e não saí de perto dela durante um bom tempo.
Havia vários quitutes comprados em padarias, inclusive um bolo que Pedro implorava para que fosse cortado de uma vez.
Max também estava lá, só para variar.
Fernanda contava detalhes da sua viagem e cobrava a atenção de todos (e também esse era o motivo para ela negar o bolo para Pedro. Só iríamos comer depois que ela terminasse de contar tudo), e embora isso fosse interessante, acabou atrasando Gabriel e eu em nosso plano. Para piorar toda a situação, Fernanda me fez repetir pela milésima vez como eu havia me apaixonado por Gabriel, quando e onde foi o nosso primeiro beijo... Mentiras e mais mentiras que deixavam tanto eu quanto Gabriel sem graça. Quando finalmente a conversa mudou o foco, eu e meu namorado falso conseguimos nos afastar dali.
– Me dá o que você quer que eu abra.
Tirei o caderno de dentro da minha bolsa e o estendi para Gabriel.
– Já viu isso alguma vez na vida? – perguntei.
Tinha esperanças de que meu pai alguma vez tivesse me mostrado aquele caderno e eu tivesse esquecido. Não queria ter de desconfiar dele mais do que eu já desconfiava.
– Não. – ele pegou o caderno das minhas mãos. – O que é isso?
– Não sei exatamente. – respondi desapontada. – Encontrei dentro do guarda-roupa do meu pai... Numa espécie de esconderijo.
– Suspeito. – ele escondeu o caderno dentro do bolso canguru do seu moletom. – Vou para o meu quarto abrir e Pedro vai me dar cobertura. Quando eu conseguir abrir, ele vai vir te chamar. Se alguém sentir nossa falta antes, você fala que estamos preparando uma surpresa pra mãe.
– Ok.
Toda aquela conversa fazia eu me sentir parte do serviço secreto.
Gabriel voltou para onde todos estavam reunidos e fez um sinal com a cabeça para Pedro que atendeu prontamente. Os dois subiram as escadas que levavam aos seus devidos quartos e eu voltei para a companhia dos Fernandes, Victor, Max e meu pai.
Era estranho ficar ali com meu pai e fingir que eu não sabia de nada sobre as coisas que estava escondendo.
Não sentia raiva, também nem tinha esse direito. Eu matei a mulher da vida dele logo quando nasci. Mas estava curiosa sobre o que ele tanto tentava me esconder e porque A VHS não tinha nada demais, então por que ele a escondeu de mim?
Depois de um tempo, aconteceu o que Gabriel disse: perguntaram sobre ele e Pedro.
– Onde foram parar meus filhos? – perguntou Fernanda olhando ao seu redor.
– Estamos terminando uma surpresa para você – respondi com a maior naturalidade que eu pude.
Nunca menti bem. Eu sempre me denunciava em meio às palavras ou histórias inventadas, mas ultimamente eu estava tendo de fazer isso com tanta frequência que algumas vezes até eu me convencia de que aquilo que eu estava falando era mesmo verdade.
– Mas que gracinha – comentou Fernanda parecendo convencida.
Depois de um tempo, Pedro apareceu dizendo que ele e Gabriel precisavam da minha ajuda.
Subi as escadas com ele, até chegar ao quarto de Gabriel. Seu quarto era o nosso QG desde que éramos crianças, por ser o mais afastado do quarto de Fernanda e Victor o que dificultava que ouvissem nossas conversas.
Gabriel estendeu o caderno para mim, já aberto. Eu o peguei depois de relutar um pouco e me sentei lentamente em sua cama enquanto Pedro montava guarda na porta.
– Leu alguma coisa?
– Não. É seu então você que tem de ler – respondeu Gabriel.
Tecnicamente não, porque o caderno não era meu, mas tudo bem.
– Acho melhor você deixar para lá... – disse Pedro estendendo a cabeça para dentro do quarto, deixando sua guarda.
– Não vou deixar para lá – eu disse rispidamente. – Pode ser algo sobre a minha mãe.
– Mas também podem ser coisas íntimas do Thomas.
– Cala a boca, Pedro, deixa de ser estraga prazer. – disse Gabriel. – Leia logo isso daí, Amanda.
Voltei a encarar o caderno.
Há muito tempo eu não sentia medo, digo, medo de verdade. Não sabia o que estava escrito ali. Poderia ser algo que revelasse o porquê de meu pai ter escondido a VHS de mim, ou poderia ser alguma outra lembrança da minha mãe, ou também poderia ser absolutamente nada. Sentia medo por essa incerteza.
– Abre isso logo – apressou Gabriel.
Abri o caderno e me deparei com uma data escrita à mão na contra capa.
1994
O ano em que eu nasci.
– O que é? – perguntou Pedro.
– É um diário – respondi passando as páginas, reconhecendo a letra do meu pai e vendo os cabeçalhos com datas nas páginas. – Ou melhor, parece ser um diário, e é do ano em que eu nasci.
Estranhei o fato de a minha voz sair tão inteligível quando meu corpo todo estava tremendo.
– Um diário do seu pai? – perguntou Gabriel.
– Sim... Do ano em que eu nasci – repeti.
Fui diretamente para a última página, e o último texto escrito ali era datado com o dia 28 de novembro de 1994, exatamente o dia em que eu vim ao mundo e minha mãe morreu.
– Vou tirar xérox do dia 28 – eu disse. – Só.
– Amanda, você pode não gostar do que está escrito aí – alertou Pedro agora entrando definitivamente no quarto, e fechando a porta atrás de si.
– Eu preciso ler. – eu disse encarando-o. – Fala do dia em que minha mãe morreu.
– Exatamente por isso você não deveria ler – insistiu.
– Eu entendo o que você está querendo dizer, mas mesmo que meu pai tenha escrito que me odiou, ou odeia, ou sei lá... Eu preciso ler. – voltei a encarar o caderno. – É sobre a minha mãe – voltei a encará-lo. – Sobre nós duas. – entreguei o caderno para Gabriel. – Liga a sua scanner e tira as cópias para mim, Gabriel.
Ele hesitou um pouco antes de ir. Parecia que o argumento de Pedro o havia feito mudar de ideia, mas mesmo assim ele fez o que eu pedi.
– Qual é a surpresa que a gente vai dar pra mãe? – perguntou Pedro tentando deixar o clima menos tenso.
– Um desenho no Paint – respondeu Gabriel ligando a sua impressora multifuncional.
- Você está brincando, né?
– Esperava o quê de última hora? – ele posicionou o diário em cima da máquina para tirar a primeira cópia. – Um colar de diamantes? Uma bolsa de marca? Um pôster do Antônio Fagundes nu?
Fui para o meu quarto mais cedo com a desculpa de que a festa de boas-vindas de Fernanda havia me cansado. Meu pai não pareceu desconfiar de muita coisa, embora, pela segunda vez naquele ano, estava na minha testa a palavra "culpada" em letras garrafais e uma enorme seta vermelha apontando para minha bolsa onde estava seu diário de 1994 e os xérox das páginas do dia 28.
Larguei minha bolsa e sua seta vermelha ao lado da minha cama. Tirei meus sapatos e comecei a caminhar dentro do meu quarto, como se aquele exercício e a sensação do frio do assoalho de madeira em meus pés fosse me dar coragem para violar toda a ética que havia dentro de mim.
Ver a VHS era diferente de ler o diário. Lá só havia imagens e falas registradas, nada de pensamentos ou sentimentos presentes no fundo de cada pessoa que estava ali, já um diário... O diário era o registro de tudo o que meu pai sentiu e pensou no dia em que eu nasci, escrito pelo próprio punho. Ódio ou amor, aquilo era muito íntimo e não era meu, embora falasse sobre mim.
Finalmente eu parei de caminhar e me sentei ao lado da minha bolsa, encostando minhas costas na cama e deitando minha cabeça no colchão. Fiquei observando o teto e um Rooney e uma Marta colados nele, enquanto sentia a agonia crescer dentro de mim ao ponto de querer romper minha pele.
Desde o dia em que eu soube que minha mãe morreu por minha causa, eu sentia a morte dela. Era como se cada dia que eu acordasse viva, eu a matasse, diariamente. Aquela curiosidade sobre o que meu pai achava sobre meu nascimento ser vinculado à morte de minha mãe estava me matando há anos e era maior e mais poderosa do que toda e qualquer ética que vivia dentro de mim e impedia com que eu me metesse na intimidade alheia daquela forma.
Minha língua estava seca e grudava no céu da boca. Tentei engolir alguma saliva, mas o máximo que consegui foi obter a sensação de que eu estava engolindo terra.
Finalmente tomei coragem e tirei as folhas de dentro da minha bolsa, as desdobrando rapidamente antes que eu mudasse de ideia novamente.
28 de novembro de 1994
A verdade é que eu nunca estive preparado para esse dia. Sempre imaginei que se uma catástrofe acontecesse eu lidaria bem com a situação, pois eu já a esperava. Enganei-me. Eu sempre me engano. Fico me perguntando até quando eu vou me enganar.
É difícil acreditar que Eleonor não está mais aqui, porque eu ainda a sinto aqui. Eu ainda a sinto na xícara de café que ela abandonou na cozinha antes de ir pegar o carro. Eu a sinto no fio de cabelo abandonado na fronha do seu travesseiro. Eu a sinto quando vejo a bolsa de bebê abandonada no chão do nosso quarto. Eu a sinto na Amanda...
Amanda é tão gorda e rosa que fico me perguntando se na verdade ela não é um morango gigante em vez de um bebê. Fico agradecido por ela não chorar, e só me encarar com seus imensos olhos azuis antes de dormir de novo. Perguntei pra médica, assim que minha filha nasceu, por que ela tinha olhos azuis e não castanhos como os meus, ou verdes como os de Eleonor. Ela disse que depois de uns meses eles ficariam verdes. Ou permaneceriam azuis. "Sei lá, a genética é algo surpreendente" e ela riu. Ela riu para um recém pai.
Estou com um puta de um medo, chapado de chá, calmante que ganhei no hospital e tristeza. Eu não faço a mínima ideia do que fazer. Eu não sei o que vou responder pra minha filha quando ela perguntar da mãe. Quando for dia das mães. Quando ela quiser saber como a mãe dela morreu... Como eu vou dizer que Eleonor morreu?
Eu não sei quais respostas eu darei a ela.
Em uma semana eu me viúvo, (um péssimo) pai, e a única coisa que eu consigo raciocinar direito, sem confusão ou dúvidas, é que o chá acabou e que o amor que eu estou sentindo pela minha filha me assusta e é maior e mais vermelho do que ela. Eu nunca pensei que sentiria algo assim tão puro no meio dessa confusão.
Dei um longo suspiro de alívio depois que li o texto, e comecei a sorrir. Embora aquele dia do diário de meu pai não me desse muitas respostas sobre minhas perguntas (como se ele me culpava ou não pela morte da minha mãe), saber que ele não me odiou logo após que eu nasci, era tão... reconfortante.
Mas a pergunta que não queria calar era: o que é ficar chapado de chá?
- Oi, Pedro – eu disse ao telefone quando ele me atendeu. – Você sabe o que é estar "chapado de chá"?
- É estar chapado de maconha. Maconha e "chá" são sinônimos, por quê?
- É ESTAR CHAPADO DE QUÊ?
Quantas coisas bizarras sobre os meus pais eu ainda iria descobrir???
[Notas finais escritas enquanto eu ainda estava postando a história semana a semana:]
OLAAAAAAR!
Se você não sabe o quem é José Mayer, TENHA CALMA! Antes de procurar no google, fale sobre ele para a sua mãe e comente aqui as reações dela! HAHAHAHAHAHA <3
Eu li que vocês gostaram da ideia do grupo no WhatsApp! Então façam assim: quem quiser participar, me mande o número de telefone pelo "inbox" aqui do wattpad que eu crio o grupo lá. Não prometo aparecer por lá todos os dias, mas prometo tentar ser bem ativa SIM!
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Muitos e muitos beijos! Amo vocês <3
Até quinta que vem!
Marine.