A Última Gravata Vermelha

By rafapalone

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No auge dos dezessete anos, Bernardo não buscava ter muitos amigos e só ficava realmente abalado quando a sua... More

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By rafapalone

Gérbera depositou a Bíblia sobre a escrivaninha ao lado da cama e apagou a luz do abajur. Salsicha jogava vídeo game no quarto 70 e tentava não se exaltar ao xingar o fracasso de seu time. Leôncio roncava alto, os estudantes nos dormitórios ao lado completamente acordados e incomodados. Rose disfarçava o exemplar de "Cinquenta Tons de Cinza" com o travesseiro enquanto a Irmã Flora orava, ajoelhada, ao lado da cama. As gêmeas Luisa e Luana faziam uma faxina no quarto, o que acontecia apenas uma vez por mês. Eu e Felipe estávamos sentados, um em cada canto do banco, enquanto ele se declarava (para mim?).

Isto é o que cada um estava fazendo no momento em que Maia Campos - sim, agora eu sabia o sobrenome dela - riscou um fósforo e o jogou sobre uma poça de álcool no chão do dormitório 56.

Todos para a praça de alimentação! Todos os estudantes devem ir imediatamente para a praça de alimentação! — um bombeiro berrava continuamente pelo alto-falante. As chamas já estavam contidas, mas a fumaça se espalhava por todo o prédio.

Assim que nos reunimos no local indicado, pude reparar no grande número de estudantes que aquele colégio tinha. Pouquíssimos ainda estavam com o uniforme, a maioria vestida com roupas neutras. Fiquei caçando Maia no meio daquele amontoado de adolescentes, mas nem sinal dela. Será que ela estava dentro do prédio? Será que o quarto 56 fora abrigo para mais uma suicida?

¿Estás bien? — Jorge apareceu eufórico por trás de nós, segurando o ombro de Felipe.

— Estou, Jorge. — Felipe bufou, segurando o maço de cigarros no bolso, inquieto. — Eu e Bernardo estávamos limpando a igreja. Bem longe dessa bagunça toda.

— Fiquei preocupado com você.

— Obrigado — respondeu Felipe, depois de uma longa pausa.

As gêmeas chegaram logo em seguida, com a apuração quase completa do que estava acontecendo. Os quartos 54 e 58 tiveram algumas danificações, mas nada muito grave. Oito estudantes estavam na enfermaria porque passaram mal com a forte fumaça, mas somente um permanecia inconsciente. Os móveis do dormitório 56 se reduziram a objetos inutilizáveis.

Seguindo as instruções dos bombeiros, os alunos afastaram todas as mesas da praça de alimentação, enquanto os funcionários carregavam centenas de colchões para dentro. Por causa da fumaça, todos teríamos que dormir naquele local. Esta informação pareceu excitar alguns estudantes, mas as manifestações de contentamento não foram sequer disfarçadas quando anunciaram que as aulas do dia seguinte estavam suspensas. A boa notícia não me fisgou, eu só conseguia pensar no possível paradeiro de Maia.

Os bombeiros responderam mais algumas perguntas enquanto os colchões eram alocados por todo o piso branco da praça. Não disseram nada sobre a origem do incêndio, o que resultou em várias teorias de que o espírito de Anita teria causado aquilo. Gérbera ordenou que todos os estudantes orassem antes de dormir, conduzindo a oração no alto-falante.

O meu colchão era tão fino que eu podia sentir o chão gelado contra minhas costas. Leôncio jogou a luz da lanterna na minha cara assim que fechei os olhos. Resmunguei enquanto ele seguia para os próximos estudantes. O chão tão próximo ao meu corpo sonolento me trouxe lembranças.

Aos doze anos, eu, meu pai e meu primo fomos a uma cidade no sul para acampar. Todo ano, ele realizava uma tentativa vaga de reaproximação que acontecia próxima ao período em que revistas de empreendimento visitavam nossa casa para entrevistá-lo. Na entrada do campo, havia um chalé administrativo, todo de madeira e muito mais confortável que as barracas do lado de fora.

— Ei — meu primo cutucou meu ombro. — Olha que mulher gostosa. — Lucas pronunciou o adjetivo como se estivesse dizendo ao Barack Obama que odeia os Estados Unidos: rebelde e inseguro. Ele era um pouco mais alto e forte que eu, os cabelos castanhos precisavam de um corte, bagunçados em um ninho no alto da cabeça. Ao contrário dele, meus cabelos loiros e dentes brancos estavam perfeitamente alinhados, conforme a demanda do Senhor Almeida.

A mulher gostosa se levantou, exibindo peitos gostosos apertados muito gostosamente dentro de um decote gostoso. Ela apoiou os braços no balcão e sorriu para nós. Lucas cutucava minha cintura e retribuía o sorriso como se aquele fosse o melhor dia da vida dele.

— Bem-vindos ao Refúgio do Sossego! Vocês têm reserva? — meu pai colocou uns papéis sobre a mesa. A gostosa arrumou os cabelos e fez beicinho ao reparar nele. — Muito prazer, senhor... — ela analisou o nome do cartão de crédito — Julio Almeida. Eu sou Catarina, mas pode me chamar de Cat. E qual o nome dessas duas fofuras?

—Muito prazer, senhorita. — meu pai estendeu a mão e se posicionou diante do balcão de maneira que eu e meu primo não conseguíamos mais ver a Catarina Gostosa. — E os dois moleques já estão com doze anos de idade, não é preciso chamá-los "fofuras". — o aperto de mão durou até o fim da frase.

Montamos a barraca em meio a várias outras, meu pai xingava toda vez que algo dava errado e olhava para mim como se eu fosse culpado. Quando os nossos "aposentos" ficaram prontos, ele saiu caminhando à procura de algum canto onde o celular processasse os dados de internet. Não se contentou até descobrir a senha do wifi do chalé administrativo.

O colchão era fino e a grama pinicava minhas costas, mas eu estava tão cansado quando fomos dormir que não me incomodei. No meio da noite, acordei enquanto meu primo cutucava meus braços, eufórico.

O que você quer, porra? — resmunguei, encostando o rosto na poça de baba que eu deixara no travesseiro.

— Seu pai! Seu pai acabou de sair daqui. — abri os olhos e vi que o colchão dele estava desocupado e o zíper da barraca fechado até a metade.

— Ele deve ter ido checar as notificações do celular, Lucas. Vamos voltar a dormir.

— Claro que não! Ele foi fazer s-e-x-o com a gostosa. Você reparou em como eles se olharam? Parecia que os mamilos dela iam explodir para fora da blusa!

— Eu não me i-m-p-o-r-t-o.

— Vamos espiar. Vamos, Bernardo! — Lucas foi um pré-adolescente muito fogoso. Levava edições da Playboy escondidas para o colégio e se masturbava nos intervalos entre as aulas.

— Cale a boca, cara. Vamos dormir.

Não adiantou. Lucas estava acordado com a lanterna na mão e uma perna para fora da barraca. Bufei, estressado, mas o acompanhei. Atravessamos o campo gramado, em silêncio, até o chalé administrativo. Entre uma barraca e outra, escutávamos roncos, risadinhas e pedidos de silêncio. No chalé de Catarina, uma luz estava acesa. Conforme chegávamos mais perto da janela, descobri que meu primo estava c-e-r-t-o.

O primeiro capítulo da história de amor entre Julio Almeida e Catarina "Gostosa" começou sobre o balcão de madeira daquele chalé. Cinco anos depois, dormindo na praça de alimentação do Colégio São Dimas, sonhei que risquei um fósforo e queimei cada centímetro do Recanto do Sossego.

* *

Não haviam cortinas na praça de alimentação, então fomos acordados pela luz quente do sol (e também por Leôncio, que resmungava no alto-falante). Os alunos já estavam autorizados para voltar aos dormitórios e estudar. Enquanto eu transitava da praça para os quartos, escutei um "Psiu".

Olhei para o lado e lá estava Maia. Minhas pernas bambearam de alívio ao ver que estava tudo bem com ela. Mais bem do que nunca, pois ela estava radiante. Usava um vestido branco até os joelhos, os cabelos muito bem penteados e uma bolsa preta pendendo em seu ombro. Estendeu a mão e me arrastou até o corredor vazio entre a cozinha e a praça de alimentação.

— Minha mãe está vindo me buscar. Fui oficialmente expulsa. — Maia riu, exibindo seus dentes perfeitos, tão brancos quanto o vestido.

— O que? — meu coração acelerou. — Maia...

— Não fique triste. — ela pegou a minha mão, meus olhos já estavam marejados. — Eu sei que estávamos nos aproximando muito e... Você é um cara muito legal, Bernardo. Por favor, não chore.

— Eu só... não quero que você vá embora.

— Eu sempre odiei este colégio, Bernardo. — ela apertou minha mão com mais força, enquanto a primeira lágrima escorreu pela minha bochecha. — Não gosto de ser limitada. Eu não nasci para ser limitada às malditas grades deste local. Ou limitada à uma religião, à uma mãe famosa, à um quarto maldito. Ou... à um namorado. Eu me afastei de você nos últimos dias porque não queria que você sofresse quando eu fosse embora. Sei que nos conhecemos há pouco tempo, mas eu também me apeguei à você. Acho que minha mãe vai me matricular em algum colégio fora do país. Tenho outros sonhos, sabe? Fazer compras em Milão, em Barcelona. Beijar algum cantor do One Direction. Quem sabe, um dia, ter meu nome na calçada da fama? Sair da sombra da minha mãe! — os olhos de Maia também estavam marejados, mas ela sorria. — Por favor, diz alguma coisa.

— Eu acho que você está certa. Você tem que ir. — eu disse, controlando minha respiração — Você não disse "tipo" nenhuma vez neste discurso todo. Acho que... essa ausência de conjunção significa que você... Você tem certeza do que está falando. — enxuguei o olho com as costas da mão. — Eu vou ficar bem. Estou aqui há uma semana, farei outras amizades...

— Ficará com outras garotas...

— Tudo bem, ficarei com outras garotas. — respirei fundo e puxei Maia para perto. Beijei a boca dela com uma ternura que, até então, não tínhamos experimentado.

— Não precisamos chorar. Não é como se estivéssemos, tipo, apaixonados.

— Você não tem tanta certeza assim do que está falando. — sorri.

— Não mesmo. —nós rimos juntos. — Mas... Antes que eu vá embora. Há algo que eu preciso te dar. Pare de pensar besteira, babaca. — ela abriu a bolsa preta e retirou um caderno com uma capa marrom desgastada. — Felipe vai me odiar, mas encontrei isso durante a minha estadia no quarto 56. Acho que você vai se interessar. — peguei o objeto em minhas mãos e, antes que eu pudesse perceber o quera, Maia completou: — É o diário de Anita. 


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