Um terrível acidente

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Em um entardecer fresco de Julho, Anne, que estava terminando seus trabalhos escolares na escrivaninha em frente à janela do quarto que dividia com Diana, parou para assoar o nariz. Ela já o havia limpado tanto naquele dia, que ele estava vermelho e dolorido. A verdade era que ela estava sendo vítima de uma gripe muito severa, e nada romântica. A enfermidade não a permitia desfrutar do céu lilaz e púrpura no horizonte, da lua prateada que reluzia mais adiante e do perfume fascinante dos lírios azul-claros sobre sua janela.

Ela teria ficado na cama o dia todo se pudesse, levantando-se ocasionalmente apenas para tomar um chá quente e ir ao banheiro. Invés disso, a garota tivera que ter um dia absolutamente normal, pois universitárias não tem o direito de ter um dia de folga - não em semana de prova.

E além da escola, Anne precisou ir ao correio (pegar uma correspondência para a Sra. Blackmore), ao parque com Diana e Fred (para que o encontro dos dois enamorados não fosse, oficialmente, um encontro), e à casa da Senhora Merkel (para uma visita que a idosa insistiu tão intensamente que Anne não teve como negar, mesmo espirrando de 10 em 10 segundos). Por isso, a ruiva estava exausta!

Um brusco "achim!" interrompeu seus pensamentos. Ela soltou o livro de álgebra e suspirou. Foi quando olhou para suas mãos suavemente repousadas sobre a mesa percebeu: o anel. O anel de noivado. A linda pedrinha verde de ametista. Que fora da mãe de Gilbert!

Havia desaparecido.

O coração de Anne se acelerou e ela fora levada para as Profundezas do Desespero tão rápido que sentiu-se até tonta! Um terrível sentimento inundou seu peito, e pensamentos assustadores, sua mente. O tempo parou ali: as palmas das mãos suando, a respiração se acelerando, um bolo na garganta surgindo, junto com uma incontrolável vontade de chorar.

"Tudo bem. Calma" disse Anne para si mesma quando recobrou a capacidade de pensar claramente. Procurou rapidamente o anel na escrivaninha, na outra mão, na janela, em seu enorme vestido. Não achou. Praguejou alto e jogou-se chão, engatinhando pelo quarto, enfiando a cabeça debaixo de todos os móveis e apalpalndo o chão com desespero. Quando estava debaixo da cama, espirrou com força e bateu a nuca na madeira!

- Ai! - gritou.

- Anne!? - exclamou Diana, aparecendo no cômodo e se deparando com o traseiro empinado de sua melhor amiga e um grito dela. - O que está fazendo?!

- Eu perdi... perdi... - balbuciou a ruiva, levantando-se e esfregando a nuca dolorida.

- Perdeu o que?

- O anel! De noivado! - berrou Anne em resposta, apontando para o dedo branco e esguio onde, definitivamente, não havia nenhum anel, e se jogou no chão novamente para continuar sua busca, murmurando sem parar "não, não, não...".

Diana empalideceu. Por um instante, sentiu o gostinho da angústia de Anne. Mas depois, percebeu que precisava ter calma para que tudo desse certo.

- Anne. - disse ela firmemente. - Eu vou te ajudar. Pare um segundo e olhe para mim. - Anne obedeceu, e a outra continuou: - Primeiramente, fique calma. Respire fundo. Vamos encontrar esse anel, e tudo vai ficar bem. Agora me diga: você estava com ele hoje de manhã?

- Hoje de manhã? - Anne tentou se lembrar. - Sim, sim... A...ATCHIM!!! Eu me lembro que Megan White disse que ele se parecia um vagalume. Eu a agradeci e ela disse que não tinha sido um elogio, afinal, um vagalume é um inseto, e ninguém quer ter um anel de noivado parecido com um inseto, mesmo que seja um inseto fofo. A-A-Atchim!

- Saúde. Me diga o que mais você lembra dele de hoje. E por onde passou. - insistiu Diana.

- Eu fui... da escola para o correio. Lá o senhor Dan olhou meu anel e disse que era bonito. Então, o filho dele, o pequeno Túlio, me pediu com um sorrisinho tão adorável para que eu deixasse algumas moedas no seu "potinho para comprar balas", que eu não pude recusar. Oh, não! Diana, e se meu anel tiver caído naquele pote? E se o pequeno Túlio tiver comprado balas com ele?! E se... ATCHIM!Nossa, daria para comprar tantas balas!

Diana, que sentia vontade de rir a cada frase descabida e a cada espirro, mas sabia que não deveria, incentivou:

- Apenas continue. Por onde mais você passou hoje?

- Bom, depois do correio eu fui ao parque com você e Fred! O parque é um lugar enorme... O anel não estava largo, mas ele pode ter caído... Pode estar em qualquer lugar... Alguém pode ter o achado! Ou pior: roubado! Eu posso nunca mais vê-lo! Eu o amava tanto! Oh, Diana, se alguém tiver roubado meu anel... Oh, Diana, o que Gilbert vai pensar? Era uma relíquia de família! Oh, por que eu tenho que ser tão, tão estabanada? Marilla bem que tentou consertar isso, mas nunca conseguiu... Eu sou assim: estabanada! É minha natureza! E agora, por causa disso, perdi meu precioso anel de noivado! ATCHIM!!! Oh, como Megan Whithe vai rir!

- Vamos encontrá-lo, Anne. Continue, por favor, e tente não enlouquecer em hipóteses e fugir do assunto!

- Depois do parque... - continuou a ruiva, esfregando o nariz em um gesto nada delicado - eu fui... para a casa da Senhora Merkel. Ela é uma senhora adorável, não é? Tomamos chá juntas. Não consigo me lembrar se ela comentou algo do meu anel, mas se o tiver visto, certamente comentou! A questão é que ela comenta tantas coisas que eu não consigo me lembrar de todas! Eu fiz carinho no gato dela. Ele tinha pelos muito macios. Meu anel pode ter ficado ali. Oh, Diana... - os olhos dela se arregalaram como se tivessem visto um fantasma - E se eu tiver engolido o anel?! A...A...ATCHIM!!!

- Anne, pense com a cabeça! - ralhou Diana, e Anne assentiu com ansiedade. - Você. Não. Engoliu. O. Anel. Como poderia ter engolido, sua louca?! Muito bem, vamos pensar... Então, ele pode estar aqui em casa. Pediremos às  meninas, à Lily e à Sra. Blackmore, para nos ajudarem a procurar. - Anne começou a protestar, mas Diana a interrompeu: - Quieta. Vamos precisar da ajuda delas, sim. Também pode estar na carruagem, na escola... A escola é enorme, mas daremos conta. Pode estar no pote do pequeno Túlio, ou no balcão de um vendedor de balas... Ou simplesmente no correio! Pode estar em algum lugar no parque, ou na casa da Senhora Merkel, ou no gato dela...! Procure um pouco mais aqui no quarto, vou falar com as meninas.

E assim foi. A Sra. Blackmore e Lily ficaram responsáveis por vasculhar cada canto da casa, virá-la de cabeça para baixo se necessário! Diana chamou Fred, e juntamente com Ruby, eles foram procurar durante toda a extensão do parque, e na carruagem também. Tillie e Josie foram ao correio, exigir que o pequeno Túlio devolvesse o precioso anel. Jane, Moody e Charlie foram à escola. E Anne, foi para a casa da doce Senhora Merkel.

Todos se esforçaram ao máximo. Mas a noite caiu, e a escuridão tornou a busca muito mais difícil. Às 10 horas, eles se reuniram na Propriedade Blackmore novamente, de mãos abanando. Anne permitiu-se desabar sobre a poltrona, enterrar o rosto nas mãos, e chorar sem esperanças, o que fez seu nariz escorrer mais ainda! Com o rosto vermelho e contorcido em uma careta, molhado de pegajoso ranho e lágrimas, e os cabelos desalinhados como nunca, ela ficava levemente assustadora.

Foi quando tocou a campanhia. E quando a Sra. Blackmore abriu a porta, era... Gilbert Blithe!

Continuação de Anne com EOnde as histórias ganham vida. Descobre agora