Avonlea

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A senhora Rachel Lynde estava sentada perto da janela de sua cozinha, cosendo colchas de algodão, de olho vivo em tudo o que passava, como sempre. Como Avonlea ocupava uma pequena península triangular cercada de água, qualquer um que entrasse ou saísse da pequena cidade rural, tinha que passar por aquela estrada do morro e, portanto, pela manopla invisível do olho onisciente da senhora Rachel.

O sol entrava forte e radiante pela janela, e dali ela via seu marido, Thomas Lynde, a quem o povo de Avonlea chamava carinhosamente de “marido da Senhora Lynde”, plantando suas sementes de nabo.

Tudo estava calmo, e o que para alguns seria considerado “um momento de paz”, era para ela “um momento de tédio”. De fato já fazia semanas que nada empolgante acontecia por ali, e a língua afiada de Rachel salivava com ansiedade por contar... ah, sejamos sinceros: contar fofocas! Até mesmo o senhor Harrison, recém chegado à Avonlea, vizinho que havia dado muito o que falar no início por seu passado misterioso e seus péssimos modos, havia se aquietado.

E então, uma luz: Sebastian Lacroix, vestindo um colarinho branco e suas melhores roupas, enquanto caminhava à pé pelos limites das terras dela. “Ora, ora...” pensou Rachel “onde será que ele vai?”.

A mulher ficou ali, criando mil e uma teorias, perguntando-se se esta ou aquela probabilidade era mesmo plausível. Em suma, ela não tinha a menor ideia, é isso que é. E pela primeira vez na vida, tinha a impressão de que não conseguiria descobrir.

Enquanto isso, Bash suava como porco indo para o abate. Antes de sair de casa, seus pensamentos eram claros, e seus sentimentos, certeiros. Mas ele não se sentia mais assim.

Ele havia escrito uma carta para Mary, pois sabia que não podia mais negar os sentimentos que nutria por outra mulher, sem ser falso consigo mesmo.

***

“Querida Mary,
Esta carta é para que você perceba as saudades que estou sentindo. Penso em você o tempo todo. Seja quando olho para nossa filha, ou quando, no meio da noite, entre um sonho e outro, imagino que está ao meu lado. Delphine é uma parte sua, o lembrete mais doce do nosso casamento. Quando olho para seus amendoados olhos, vejo você amor.

Durante o caminho que percorremos lado a lado, nós vivemos coisas muito especiais, compartilhamos uma história de paixão perfeita. Quando você se foi, pensei que nunca mais voltaria a sorrir. Muito menos, que me apaixonaria novamente. Como poderia, se todo o dia eu me deparava com aquele neném falando suas primeiras palavras, dando seus primeiros passinhos, descobrindo o mundo, enquanto eu apenas desejava você ao meu lado para compartilhar aqueles momentos comigo?

Acho que nunca fui tão feliz como no momento em que nos conhecemos. Foi aí que senti o quanto a vida podia ser gratificante e bela. Ao seu lado tudo era mágico, cheio de energia positiva e inesquecível.

Mas tenho certeza que as coisas podem mudar, sempre acreditei nisso. E mudaram para mim. Encontrei uma mulher que me fez sentir aquela paixão novamente. Mary, você foi meu primeiro amor. E eu te perdi de forma tão brusca e repentina que a dor jamais se extinguirá. Aquela mulher, também perdeu seu amor, sabe? E ela também é, todo dia, vista com preconceito. Mas continua apaixonada pela vida, tendo pensamentos incríveis, vivendo aventuras. Ela me entende. Eu preciso dela.

Não sei se os sentimentos são recíprocos. É o que pretendo descobrir hoje. Mas precisava falar com você antes. Sei que me quer feliz, e sei exatamente o que você diria se estivesse aqui. Sempre tão altruísta!

Ainda assim, preciso deixar que você se vá. Não completamente, pois nosso amor nunca me abandonará, pois a dor de te perder nunca se apagará, e nossa filha Delphine sempre me lembrará da primeira vez que te vi. Mas preciso que uma parte se vá. Para que eu possa me permitir amar Muriel Stacey.

Prometo que você nunca será substituída, tanto na minha vida quanto na de Delphine. Prometo que cuidarei dela, e cuidarei de Elijah. E acima de tudo, eu prometo te amar como fui fazendo até hoje, mas desta vez com um esforço redobrado, para que nada nos separe, mesmo se os sentimentos da senhorita Stacey forem, como eu espero, recíprocos.

Adeus,
Bash”

***

Ajeitando o colarinho pela milésima vez, Bash adentrou a floresta de abetos, certa vez chamada de "assombrada" por uma ruivinha imaginativa até demais, e deu de cara com...

- Marilla!

- Sebastian! - ela olhou para ele, assustada com a aparência pouco natural do homem e escondendo aquele importante papel atrás de suas costas. - Está tudo bem?

- Hã... sim, senhorita Cuthbert. - ele tentou sorrir, mas acabou fazendo uma careta. Se notou que ela estava escondendo algo, não demonstrou. Estava ocupado demais tentando esconder seus próprios segredos.

- Onde está indo? - perguntou ela, curiosa.

Ele se calou. Um observador minucioso teria notado que seus olhos se arregalaram um pouco e olharam para os lados como se procurassem uma escapatória fisica para aquela pergunta. Ele também notaria, que dentre tantas preocupações, um sorriso esperançoso surgiu quando Bash pensou na senhorita Stacey.

Mas a míope Marilla, apenas viu um homem cada vez mais nervoso.

- Lugar... nenhum. E a senhorita? - ele rebateu, e suspirou aliviado quando foi a vez de Marilla de se calar. Aquele mesmo observador minucioso teria notado como os olhos dela se estristecerem com a lembrança que a pergunta lhe trazia. E notaria também, que dentre tantas preocupações, um sorriso esperançoso surgiu ao pensar na destinatária da carta: o papel que ela havia escondido. Mas o angustiado Bash apenas viu uma senhora repentinamente encabulada. Ela gaguejou: - Só passeando...

Como se Marilla fosse o tipo de pessoa que "passeia"!

- Então... passar bem, senhorita Cuthbert. - despediu-se o homem apressadamente com um aceno, e a outra não se opôs:

- Claro, claro. Venha nos visitar um dia desses, Sebastian! Até. - e os dois caminharam (ou correram?) em sentidos opostos.

Bash seguiu seu caminho para a casa da Senhorita Stacey, e Marilla seguiu seu caminho para o correio, onde enviaria uma carta extremamente triste para sua Anne.

Ou, como é mais apropriado no momento, para Melkita'ulamun.

Continuação de Anne com EWhere stories live. Discover now