Toronto

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Gilbert Blithe acordou com um som estranho, abafado e constante naquela manhã fria de domingo. Como se alguém estivesse batendo na porta.

De qualquer maneira, este pensamento logo foi apagado por outro muito mais doce: um beijo. Um beijo de Anne Shirley-Cuthbert. Pela primeira vez, ele era real, e nada no mundo faria Gilbert mais feliz. Ele tinha recebido uma das cartas da garota no dia anterior, e sonhara com ela naquela noite também. Ele sorriu, ainda com as pálpebras fechadas, lembrando-se de que, no sonho, eles não eram interrompidos por um trem que viria para Toronto.

Lentamente ele abriu seus olhos, se dando conta de que o incômodo barulho continuava, e ergueu a cabeça. Céus, o que poderia ser aquilo? Foi só então que ele se deu conta: estavam mesmo batendo na porta!

Cambaleando e piscando com dificuldade por causa da claridade, Gilbert saiu da cama e andou até a porta da pensão. Antes de abri-la entretanto, lembrou-se de passar as mãos no cabelo uma única vez com o intuito de arrumá-lo rapidamente.

O resultado não foi como ele esperava: um único cacho rebelde escolhera ser mais ousado, ficando completamente eriçado pra cima, concedendo-lhe uma aparência  amarrotada e cômica. Porém, Gilbert nunca soubera o quanto as figuras à sua frente tentavam segurar uma risada quando o viram pela primeira vez.

- Olá! - disse uma garota de grandes olhos azuis acinzentados e expressivos. Quando Gilbert os viu, imediatamente se lembrou de sua amada Anne. Mas era provável que se visse um corvo com chapéu de festa andando pela rua, ele lembraria-se dela também. Afinal, estava apaixonado!

Mas além dos olhos, a garota na porta - baixa, roliça, loira, tão emperequetada quanto um lustre - não nutria qualquer outra semelhança com Anne. Ela tinha por volta dos 14 ou 15 anos e carregava uma bandeja coberta por um tecido bordado.

Atrás dela, mais duas pessoas com aqueles mesmos olhos azuis aguardavam sua vez de falar: uma garotinha de prováveis cinco anos, que esbanjava um sorrisinho sapeca no rosto e cabelos cor de mel, e um rapaz de prováveis vinte, alto, esguio e de cabelos loiros extremamente lisos.

- Bom dia. - respondeu Gilbert, a voz ainda um pouco rouca de sono.

- Somos os Ambrose, seus vizinhos de frente. Nossa mãe nos mandou lhe entregar esses bolinhos e dizer boas vindas. Pedimos desculpas por não termos vindo antes. - disse a garota, estendendo a bandeja com um sorrisinho tímido. Surpreendido com o gesto de carinho numa cidade conhecida por não se dar bem com novos moradores, o estudante se comoveu. Ele pegou a bandeja, agradeceu, e ela prosseguiu roboticamente, como se tivesse decorado um texto: - Meu nome é Stella. Stella Ambrose. Esse é meu irmão mais velho...

- John Ambrose. Me chame de John. - o garoto esguio a interrompeu, estendendo a mão. Gilbert estava pronto para cumprimentá-lo e comentar que, coincidentemente, esse era o mesmo nome de seu pai, quando Stella, gritou, erguendo o pescoço para olhar dentro do quarto desorganizado de Blithe:

- Cristy! Saia já daí!

Gilbert virou-se para trás bem a tempo de ver o sorriso sapeca da pequena invasora se desfazer quando ela, por mera curiosidade, agachou-se ao lado de uma abelha no chão e a apertou sob seu dedinho.

Stella e John irromperam o quarto sem pudor algum e se ajoelharam ao lado da irmãzinha, que já gritava, chorava e se esperneava, como se naquela abelha contivesse o veneno mais mortal da face da terra.

Tendo sua casa "invadida", uma criança chorando em seus aposentos, e ao redor dela dois irmãos preocupados, Gilbert viu-se fazendo exatamente isso: lentamente, ele fechou a porta, deixou a bandeja de bolinhos no criado-mudo e, abismado, aproximou-se do inusitado trio. Foi para o lado da mais jovem e tentou dizer mais alto que seus gritinhos estridentes:

- Cristy. Cristy, me escute. Vai ficar tudo bem. Mas preciso que me deixe tirar o ferrão, agora. Se eu não demorar, prometo que vai doer menos. Você me permite, senhorita? - Os olhos repletos de lágrimas da criança voltaram-se para ele com aquele "senhorita" que iluminava todo o restante da frase, ainda com um pouco medo e insegurança mas inclinada a deixá-lo fazer o que pedia. - Eu prometo à você.

Cristy assentiu uma única vez com pesar, fechou seus olhinhos azuis com força, e estendeu seu dedinho gorducho onde o ferrão localizva-se. Agilmente, Gilbert o removeu. A menininha ainda chorava, mas seus gritos haviam cessado. Ele olhou para os dois irmãos mais velhos e disse:

- Coloquem gelo quando chegarem em casa. Vai ajudar na dor.

- Obrigada! - a pequena Cristy se jogou sobre Gilbert ao perceber que ainda estava viva e enlaçou seu pescoço. Ele sorriu com o gesto afetuoso da criança.

- Largue-o, Cristy! - ralhou Stella. - E pare com essa mania de invadir casas e se empoleirar em estranhos! Não que você seja um estranho, senhor... senhor...

- Blithe. Gilbert Blithe.

- Você lida bem com crianças! - ela continuou a conversa, pegando a irmãzinha no colo. E com uma admiração sincera brilhando em seus olhos, questinou: - Como sabia o que fazer?

- Vim estudar medicina na Universidade de Toronto, Senhoria Stella.

- Oh, me chame apenas de Stella! - rebateu a mocinha, já apaixonada.

- Temos aqui um universitário, então! - exclamou John, um homem quieto, mas com uma ousadia no olhar que muitos não compreendiam à primeira vista. - Nos veremos muito daqui para frente na faculdade, Gilbert Blithe.

"Já estou aqui há uma semana e meia," pensou Gilbert, "já compareci há três dias de aula, e ninguém havia sido tão gentil comigo quanto estes irmãos. Com sorte, terei encontrado meus primeiros amigos em Toronto na família Ambrose."

E amistosamente, a conversa com os simpáticos vizinhos se prolongou por mais alguns minutos. Mas tudo o que Gilbert pensava era: "preciso contar tudo isso para Anne!"

+++

- Já pensou em ser pediatra, Blithe? - John perguntou, três dias depois, na sala de estar da família Ambrose enquanto os dois bebericavam um drinque.

Gilbert estava certo quando pensou que havia encontrado amigos nessa família. Ele havia sido convidado para um jantar na noite anterior, cordeiro assado, e todos haviam se encantado por ele. O senhor e a senhora Ambrose eram sujeitos muito respeitáveis e educados que o acharam um jovem estudante igualmente respeitável e educado, apropriado para relacionar-se com seus filhos.

Stella e Crissy, desde o primeiro momento, já estavam encantadas pelo futuro doutor. E John provara ser um gênio e ótimo companheiro. Inteligente e sagaz, futuro engenheiro, geralmente silencioso - mas quando falava, suas palavras sempre eram ouvidas.

- Bom... - Gilbert pensou um pouco na resposta. Vizualizou um futuro alternativo: médico pediátrico. A ideia o deixou intrigado. - Não, não até esse momento... Meu maior interesse sempre foram as pesquisas. Mas quem sabe o que o futuro nos reserva, certo?

- Você está certo. Já vai?

Gilbert havia se levantado e pegado sua bolsa.

- Sim, já vou. Amanhã temos trabalho, você sabe. O Sr. Frederick não pega leve. Ele me lembra um professor que tive na infância... ele chamava-se Sr. Phillips. - o rapaz reprimiu um suspiro com aquela não muito agradável lembrança. - Além do mais, preciso passar na estação. Vou comprar bilhetes para ir para a casa, meu amigo!

- Ah, a pequena Avonlea... - disse John. - Ouvi falar tanto dela nesses últimos dias que é como se já a conhecesse! Só não à conheço tão bem quanto a sua famosa Anne...

- Até logo, camarada! - Gilbert saiu com uma risada entalada na garganta, deixando sozinho seu novo amigo, que também sorria.

Continuação de Anne com EDonde viven las historias. Descúbrelo ahora