Ka'kwet

5.6K 368 92
                                    

Ka'kwet tinha o olhar fixo no horizonte amarelo homogêneo daquela tarde abafada. Ela estava empoleirada sobre a única janela, pequena e alta, com barras de ferro como em uma prisão, que havia em seu quarto. Era um lugar cinzento, onde cabia apenas uma cama (dura e pequena demais para que ela pudesse se deitar espichada), e um móvel inútil.

A índia tinha olhos marejados, mas a certeza de que, apesar disso, nenhuma lágrima seria derramada, pois sua capacidade de chorar havia ido embora com toda e qualquer emoção remotamente humana.

A garota nem sequer se considerava infeliz. Ela se considerava vazia, o que, na verdade, era muito pior. Sua última centelha de esperança jazia no fundo do seu coração; ainda lá, porém em seu sétimo sono.

Lá fora, seus pais - um homem robusto e forte (que mais queria ir até àquela maldita escola e morrer tentando salvar a filha, mesmo que isso de nada adiantasse à ela) e uma mulher amorosa e doce que chorava tudo o que Ka'kwet não conseguia -, colhiam seus pertences entre as folhas no chão da mata para irem embora.

Abraçados, eles deixaram para trás uma fogueira apagada, alguns tocos de madeira, e sua filha do meio. À sua frente, tinham um longo caminho até a tribo Ma'kmaq, e a promessa de voltarem com toda ajuda que conseguirem, para resgatar Ka'kwet daquela escola terrível.

Eles caminharam dias e noites seguidas; passaram fome, sede, cansaço, frio e medo pelo futuro incerto. No início, conversavam, tentaram manter-se motivados... Mas em poucas horas, o silêncio se ergueu sobre ambos como uma nuvem escura, densa e pesada de tristeza, que os empedia até mesmo de olhar um para o outro.

As noites eram as piores. O frio constante, a lembrança de uma filha no pior lugar que se poderia imaginar e o som de animais tão próximos, atrapalharia o sono de qualquer um. Durante o dia, tudo o que faziam era caminhar, caminhar e caminhar, até todas as suas forças se esvairem. Então, comiam algumas das frutas que encontravam no caminho e pequenos animais que o homem caçava. Logo em seguida, voltavam a caminhar, caminhar e caminhar, o sol raiando sobre suas peles vermelhas.

O sentido do tempo perdeu-se para os pais de Ka'kwet. "Como havia sido mais fácil e rápido vir naquela carroça com o pai da menina ruiva, a quem Ka'kwet chamava de Melkita'Ulamun!".

Mas eles eram fortes. E suportariam qualquer coisa pela filha.

E quando, enfim, o sol cansou de nascer e se pôr para eles sobre os mesmos horizontes infinitos que indicavam tudo o que ainda teriam de caminhar, os índios chegaram à tribo próxima a Avonlea, que parecia tão inquietantemente feliz quanto sempre fora.

Os dois foram recebidos com muitas perguntas e, por parte dos irmãos e irmãs de Ka'kwet, muito carinho também. Receberam alimentos, roupas e uma noite de descanso, antes de saírem no dia seguinte, com todos os seus homens mais fortes, para salvar a menina.

O nascer do sol fora resplandecente no dia da partida, renovando suas forças e plantando a fé necessária em seus corações e mentes. O caminho seria novamente difícil e árduo, eles sabiam. Mas tinham a esperança de que, quando tivessem de fazê-lo outra vez, teriam Ka'kwet sã e salva junto deles.

Continuação de Anne com EOnde as histórias ganham vida. Descobre agora