Avonlea

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A linda, caprichosa e relutante primevera canadense havia chegado à Green Gables. Agora, os dias eram doces e frescos, com crepúsculos rosados e milagres de ressurreição e crescimento. Os pássaros cantavam, as florescências perfumavam o ar, e o vento corria solto, fazendo farfalhar as árvores.

Os bordos do jardim em Green Gables estavam com botões vermelhos, e brotos espirolados de samambaias despontavam por ao redor da casa solitária onde Matthew e Marilla orbitavam, sentindo-se tentados a reparar nestes pequenos detalhes da natureza agora que Anne não estava em casa para fazê-lo.

Nas terras ermas acima e ao longe, perto da propriedade dos Barry, as anêmonas brotavam como se fossem estrelas brancas e rosa por baixo de suas folhas marrons. Lá, a mãe de Diana, que nunca se considerara até aquele momento uma amante da natureza, passara uma manhã melancólica colheando-as e enchendo sua cesta de despojos florais, enquanto perguntava-se porque dera ouvidos a Marilla e permira que sua filha fosse morar em Charlottetown!

Marilla se perguntava a mesma coisa. De fato, nenhuma das duas se arrependia, mas a saudade as fazia pensar assim. Uma saudade dolorosa e permanente que, aparentemente, elas teriam de se acostumar.

- Jerry. - chamou Marilla da cozinha, limpando as mãos no avental após colocar o bolo no forno. O ajudante estava em seu período de almoço, sentado do lado de fora com o prato entre as mãos. Ele virou a cabeça e olhou para a mulher. - Quando acabar, prepare Belle. Vou visitar Rachel à tarde. Esta casa está silenciosa demais, e acho que não vou suportar por muito mais tempo. É claro que ela vai encher-me a cabeça com fofocas desnecessárias do nosso novo vizinho, o Sr. Harrison, mas prefiro isso à ter que ficar mais um minuto nessa cozinha, fazendo comida como uma louca!

- Claro, Srta. Cuthbert. - respondeu Jerry. Então, deixou sua comida ali, levantou-se e estacou na porta. Ficou olhando para Marilla durante um bom tempo, que movia-se com agilidade pela cozinha, como se praticasse uma dança fervorosa e difícil: da mesa para o forno, do forno para a chaleira, da chaleira para a despensa, e da despensa para a mesa outra vez.

- O que foi, menino? Quer mais comida? Porque temos bastante para você repetir mais três vezes, posso lhe assegurar! - perguntou ela quando viu Jerry parado ali.

- Srta. Cuthbert... se não for muito incômodo, gostaria de sair mais cedo hoje. E... às quartas.

Marilla parou de caminhar, com uma chaleira na mão e um prato na outra.

- Todas as quartas?

- Sim.

- E por que, Jerry?

- A senhorita Stacey... E-eu a conheci, e e-ela disse que às vezes poderia me dar u-uma pequena aula gratuita quando eu saísse de Green Gables, se não fosse muito tarde. E eu realmente gostaria de aceitar. - concluiu nervosamente o ajudante. Ele realmente queria muito aquilo. Quando Anne ainda estava aqui, ela inconcientemente despertara nele a fagulha de interesse necessária para para que Jerry se apaixonasse pelo estudo. No verão passado, havia aprendido a ler. Mas ele queria mais.

Por um intante, ele permitiu-se pensar naquela garota ruiva, agora tão, tão distante. Precisava ele admitir que sentia falta dela ali, mesmo que no início a amizade dos dois tivesse sido levemente conturbada.

- Ah, - a voz de Marilla o trouxe para o presente outra vez - achei que a escola ainda não estivesse pronta.

- E não está. Até a inauguração, nosso encontro será na casa dela.

- Bem, não vejo como posso negar. É uma oportunidade muito boa, não é? Essa senhorita Stacey é mesmo muito gentil... Bom Jerry, pode sim sair mais cedo hoje e às quartas.

- Obrigado, Senhorita Cuthbert! - respondeu o rapaz sorrindo abertamente, e saiu correndo para o celeiro.

- Mas avise o Matthew! E prepare Belle! Coma mais, Jerry! - a mulher gritou enquanto ia até a porta, mas ele já estava longe demais para ouvi-la.

Enquanto isso, na borda do riacho, há apenas alguns quilômetros dali, pouco além da nascente, a gentil Murial Stacey também pensava em Anne. Ela desfrutava de uma deliciosa tarde de pesca com seu novo grande amigo: Sebastian Lacroix. Eles haviam, silenciosamente, combinado de encontrarem-se ali toda manhã. Não fora realmente um combinado, mas algo que ficara subentendido entre eles na segunda vez que se viram ali no mesmo horário.

Às vezes, Sebastian levava Delphine, que há pouco havia aprendido a dizer sua primeira palavra: "papá". Ela estava cada vez mais fofa, roliça e esperta, e Murial adorava a companhia daquele bebê, ela que sempre sonhara em ter seus próprios filhos. E às vezes, Srta. Stacey levava comida: uma cesta inteira para dividir, com direito à toalha de piquenique e flores de sua horta.

Estas tardes costumavam ser repletas de conversas, risadas, confissões e brincadeiras com a neném. Murial havia descoberto em Sebastian a melhor companhia (adulta) de toda Avonlea, uma alegria para seus monótonos dias de férias. E Sebastian havia descoberto em Murial, uma amiga. Já fazia algum tempo que ele não tinha, e não queria, uma verdadeira amiga, pois a última fora Mary. Mas de repente a relação de ambos já era tão concreta que nada poderia mudá-la.

Naquela tarde em particular, em que, aliás, Delphine não estava, e nem a comida, a conversa havia cessado quase cinco minutos depois que eles encontraram-se, tendo uma única e cordial troca de palavras antes de mergulharem em um silêncio profundo e confortável. Agora o único ruído que se ouvia de plano de fundo para seus pensamentos era o vento sussurrando entre os abetos da floresta e o burburinho risonho do riacho.

Sentados lado a lado, com uma vara de pescar na mão e olhando para as águas calmas abaixo de seus pés, cada um pensava em algo diferente.

Srta. Stacey, sonhadora com o queixo apoiado sobre uma das mãos, como já mencionado, tinha a cabeça em Anne, na primeira e na última vez a vira. Ao mesmo que pareciam pessoas diferentes, a real personalidade da garota nunca se perdera. Mas aquela coisinha interessante e fofoqueira daquele primeiro dia de aula havia evoluido para uma moça inteligente e linda. A professora tinha saudade, e muito orgulho dela. Anne havia sido sua aluna, mas uma amiga também!

Já Bash, não semeava a mesma paz interior de Murial. Se ela tivesse olhado para ele, veria suas sobrancelhas franzidas, seu olhar confuso e seu lábio superior riçado. Ele pensava nela de uma forma diferente do que pensava no dia anterior, e seu coração agitado estava uma mistura de carinho, alegria, culpa, raiva, tristeza, saudade e mais milhões de sentimentos que ele não sabia nem nomear.

Pois fora a primeira vez que considerara a ideia de estar se apaixonando por Murial Stacey.

Continuação de Anne com EOnde as histórias ganham vida. Descobre agora