Charlottown

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Anne acordou com um som estranho e abafado naquela manhã. Ou talvez, o que a tenha realmente acordado fora a estranha ausência de outros sons. De qualquer maneira, este pensamento logo foi apagado por outro muito mais doce: um beijo. Um beijo de Gilbert Blithe. Um beijo que não fora fruto de um sonho ou de um de seus vários devaneios; pela primeira vez ele era real, e nada no mundo encantaria mais Anne naquele momento. Ela sorriu, ainda com as pálpebras fechadas, sentido a sensação de ser abraçada por aqueles braços fortes.

No dia anterior, Gilbert enfim declarara seu amor à Anne. Não exatamente com palavras, mas aquele beijo demonstrara tudo, e mais um pouco. Infelizmente, o rapaz teve de ir embora correndo logo em seguida, para a Universidade de Toronto. Com esta triste e repentina lembrança, o rosto da apaixonada Anne contorceu-se em amargura e ela abriu seus olhos. Primeiro um, depois o outro, confusa sobre onde estava.

Ao levantar a cabeça, estranhou não ver o que esperava, pois era o que havia visto todas as manhãs nos últimos seis anos: uma avalanche de luz do sol alegre entrando pela janela de seu quarto em Green Gables, de onde ela ainda poderia ver um resquício do céu azul da manhã e a linda Rainha das Neves repleta de inflorescências. Envés disso, ela viu uma cômoda marrom com uma jarra de água e um copo de vidro em cima.

Primeiro, viera a saudade. Oh, como ela gostaria de ter acordado com o cantar dos pássaros e o tremular da cerejeira branca do lado de fora de seu quarto! O que ela ouvia na verdade, eram passos pesados e rápidos no andar de cima.

Mas depois, seu coração se enchera de uma emoção deliciosa, algo muito agradável, pois ela se lembrara que agora era uma universitária, e estava em seu novo lar. Ela estava em Charlottetown! Os passos lá em cima eram de suas amigas, e Anne teria de se resignar com isso. Por hora, era o que ela tinha. E era com isso que teria de se animar.

Com um pulo, ela saiu da cama e avidamente andou pelo quarto, esfregando os olhos para espantar o sono e os pedacinhos de sonhos. Olhos estes, amantes da beleza, já reluzindo de deleite e demorando-se em cada detalhe do quarto, que lhe parecia tão novo e romântico. Mas quando eles cravaram-se no relógio acima do guarda-roupa, sua barriga gelou.

Já eram 08:56, e a Sra. Blackmore, dona da casa, que muito gentilmente a acolheu junto de suas colegas, havia deixado bem claro anteriormente que o café da manhã seria servido às 09:00 horas em ponto, e a última coisa que Anne queria era atrasar-se no primeiro dia e causar uma primeira impressão péssima!

"Por que Diana não me acordou?" pensou ela, olhando para a cama da amiga. Mas não havia tempo para matutar à respeito. A garota reprimiu um bocejo, e mais rápida que nunca, arrumou-se. Foi escandalosamente difícil vestir o corsete e o longo vestido de tafetá sem ajuda, e depois ainda fazer seu coque pompadour (já que as tranças haviam deixado de ser o penteado mais constante de Anne), e quando ela por fim desceu as escadas, já eram 09:07.

- Bom dia, Lily! - Anne cumprimentou a criada surda-muda enquanto descia as escadas correndo, sorrindo apesar da pressa ao imaginar as aventuras daquele novo dia. Lily, uma moça jovem, morena e esguia que já trabalhava há anos para a Sra. Blackmore, acenou para ela com a cabeça de um modo simpático e continuou seu caminho. - Bom dia! - exclamou Anne novamente quando chegou à sala de refeições, um cômodo enorme e bem iluminado.

Sua expressão animada logo se desfez ao ver uma fortíssima reprimenda no olhar da Sra. Blackmore. As outras garotas sentadas também à longa mesa estreita de mogno, já tomando o café da manhã, laçaram-lhe um sorriso. Até mesmo Josie Pye, que nunca fora lá muito amiga de Anne, parecia ter se apiedado dela.

- Anne. - a mais velha cumprimentou secamente, fulminando-a simplesmente com essa palavra.

- Me perdoe pelo atraso Sra. Blackmore, eu realmente sinto muito! - começou Anne, nervosa, retorcendo as mãos em frente ao corpo e indo sentar-se ao lado de Diana. - Não sei o que houve, pois em Green Gables, minha antiga casa, eu sempre acordava quando os galos cantavam! Penso que, de fato, fiquei muito casada de ontem. Foi para mim um dia repleto de fortes emoções, as mais fortes que já tive!, a senhora sabe como é, não sabe? E então, dormi como uma rocha... Mas garanto-lhe, Sra. Blackmore, que me esforçarei ao meu máximo para isso não se repetir. Como a senhora ainda não me conhece, acredito que tenha tido uma primeira impressão ruim de mim, não é mesmo? Mas apesar destes incidentes ocasionais, comporto-me muito bem, gostaria que soubesse. Nunca cometo o mesmo erro duas vezes, apesar de sempre encontrar novos. Oh. Estou falando demais?

- Sim, você está. - foi a resposta azeda da Sra. Blackmore assim que teve uma brecha. Porém seu olhar já havia se suavizado. - Mas eu lhe perdoo, tanto por isso quanto pelo atraso; imagino como deve ser esta mudança repentina na vida de vocês. Fui eu quem pedi para que, apenas hoje, ninguém acordasse ninguém Srta... Anne, não é? Soube que era falante desde que pus os olhos em você!

- Com E.

- Perdão?

Anne sentiu as bochechas corarem de vergonha. Ela percebeu-se de volta aos seus 11 anos, quando ainda tinha o ímpeto de não saber segurar a língua. E então, jurou para si mesma que não diria mais nada durante a refeição caso não fosse estritamente necessário.

- Meu nome. A-N-N-E. Com "E" no fim. - ela explicou, e Diana soltou uma risadinha contida ao seu lado, tal como Ruby.

- Muito bem, A-N-N-E. Que não se repita o atraso. - continuou a Sra. Blackmore, agora com um leve sorriso, mas depois enrugando a testa novamente. - Espero que desfrute de seu café da manhã. E à vocês, meninas, peço licença. Tenho que ir ao mercado e passar na casa de uma conhecida essa manhã, mas voltarei para o almoço. Qualquer coisa que precisem, chamem Lily. E tenham uma boa manhã.

Então a mulher se levantou, alisou o vestido marrom e deixou-as sozinhas. E no instante em que ela ultrapassou a porta, risadas altas eclodiram ao mesmo tempo naquela casa tão grande e vazia, produzindo ecos alegres há muito esquecidos.

- Ela é tão mal humorada! - disse Ruby com as faces escarlate, olhos lacremejando e uma das mãos na barriga, fazendo todas elas rirem ainda mais.

- Achei que ela fosse me devorar viva quando cheguei aqui! - completou Anne, com uma voz estridente e divertida, esquecendo-se por um instante de suas preocupações e aproveitando o momento com as amigas.

- E o que vocês esperavam com um nome desses? - soltou Tillie, lançando com suas risadas exageradas, vários perdigotos através da mesa até o bolo de cenoura das meninas sentadas nas cadeiras opostas.

E os risos bem-humorados continuaram incessantes até elas notarem uma figura alta e de silhueta fina na porta. Era Lily, olhando para elas como se olhasse para crianças mal-comportadas. Anne e todas as outras imediatamente ficaram sérias e mudas, constrangidas.

Mas então, surpreendendo à todas (talvez até mesmo à ela própria), Lily começou a rir também!

Continuação de Anne com EOnde as histórias ganham vida. Descobre agora