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Hoje digamos que não acordei com o melhor dos humores, me arrumei irritada, acabei tropeçando na mesinha que tem perto da cozinha e caindo, o que só piorou a minha irritação. Eu conseguia ouvir os cantos dos pássaros e isso sempre me acalmava, mas hoje estão particularmente me irritando, assim como qualquer coisa que pareça feliz perto de mim. Há dias em que minha ficha literalmente parece cair em meu colo, eu sempre fui uma mulher saudável, sempre cuidei muito de mim e para quê isso tudo me serviu?

Para eu de repente acordar cega.

— Bom dia Demetria. — A voz meiga de Selena preencheu meus ouvidos, me deixando ainda mais estressada. — Certo, parece que alguém não acordou de bom humor.

— O que lhe faz pensar isso? — O tom sarcástico em meu questionamento retórico era palpável.

— Qualquer coisa estarei na cozinha.

Ouvi os passos dela se afastando, eu estava mais uma vez sozinha na biblioteca com a minha solidão obscura, cada dia tudo parecia ficar ainda mais negro, um negro que eu teria que obrigatoriamente me acostumar. Cega, eu estava cega há seis meses. Tinha seis meses que eu não sabia o que era acordar e observar o ceu azul ou nublado, depende muito do tempo maluco do Rio de Janeiro. Seis meses que não coloco meus pés na areia da praia para observar o mar, observar as ondas vindo e indo, observar as pessoas aproveitando aquela maravilha do universo.

Tudo isso porque fiquei repentinamente cega.

Uma lágrima grossa escorreu por minha bochecha, mesmo que tudo a minha volta tivesse sido adaptado para que eu pudesse me acostumar com a minha situação, haviam dias que era impossível não acordar e me sentir incompetente por não enxergar mais. Por minha causa o casamento da minha mãe não estava indo bem, eu estava sendo um fardo para todos e agora até mesmo para uma garota que mal conheço.

A realidade é dura e crua, quase impossível de se manter a fé mas ela é tudo o que tenho.

Eu não tenho mais nada além do vazio, as alegrias que antes eu tinha se foram, restando apenas eu e minha escuridão. É solitário viver assim, as pessoas acham que compreendem mas não fazem ideia do quanto é ruim você não enxergar nada além de um vazio escuro. Não quando se passou quase uma vida enxergando tudo perfeitamente e valorizando cada segundo de sua vida para de repente perder tudo isso.

Minha família acha que compreende, tentam me fazer acreditar que não atraso a vida deles quando na verdade eu sei que atraso.

— Eu sei que está aí. — Resmunguei para Selena, conseguia sentir a presença dela.

— E-Eu... Me desculpe, não queria invadir o seu espaço. — Murmurou. — Vim ver se precisava de algo, mas vi que não era o momento certo.

— Tanto faz.

— Você quer conversar?

— Conversar com você me fará enxergar outra vez? Acho que não, certo? — Silêncio.

— Desculpe-me.

Ouvi os passos dela saindo da biblioteca, sei que estava sendo rude com ela sem motivo algum, Selena não tinha culpada de nada do que estava me acontecendo, mas as vezes era impossível não ser rude com alguém. Um suspiro longo fugiu de mim antes que eu me pusesse de pé, com cuidado caminhei para fora da biblioteca até chegar na cozinha, onde pude puvir a movimentação da mais nova e sentir o delicioso aroma da comida que ela estava fazendo.

— Desculpe-me... — Murmurei, não era de meu feitio pedir desculpas.

— Tudo bem... — Sua voz trêmula denunciou o choro que ela continha.

— Não, não está. Você foi gentil comigo desde que chegou e eu fui rude com você por algo que não tem culpa, ninguém tem.

— Eu entendo que se sinta...

— Não continue, eu já ouvi muito isso. Você não compreende, ninguém compreende, só dizem isso para que eu me sinta reconfortada mas isso não faz com que eu me sinta assim.

— Então me mostre. — Pediu me deixando surpresa. — Diga para mim como você se sente, como é que você está com tudo isso, que eu lhe mostrarei como é a beleza que a vida tem de uma forma que você possa ver. — Mordi meu lábio inferior contendo um sorriso.

Ela era a primeira a me pedir isso, a primeira em seis meses.

Sentei-me na banqueta da ilha.

— É solitário, sabe? É vazio. — Murmurei. — Todos acham que entendem como eu me sinto, mas não entendem, eles não fazem ideia como é acordar e não enxergar nada. Eu sempre dei muito valor a vida Selena, sempre fui gentil com todos e isso me aconteceu, tudo foi tirado de mim sem nenhuma explicação plausível. Eu perdi toda minha liberdade, tudo o que me deixava alegre quando eu acordava triste.

— Você tem toda razão. Ninguém pode entender como se sente porque nunca passaram por isso, eu não sei como é ficar sem enxergar e não sei como isso deve ser agonizante para você. Acredito que todos falamos isso apenas para tranquilá-la quando na verdade causamos mais feridas. — Brinquei com os meus próprios dedos. — Quero que me mostre como é estar assim e eu vou te mostrar que a vida continua linda, que se isso aconteceu é porque tem um propósito e na hora certa você vai compreender.

— Como quer que eu te mostre como é ser cega Selena?

— Eu não pensei nesse detalhe ainda, mas vou pensar. — Murmurou me fazendo rir. — Você não está sozinha Demetria.

— Como pode ter tanta certeza?

— Tenho tanta certeza porque eu estou aqui. — Garantiu.

Um pequeno sorriso se formou em meu rosto, Selena deixou um singelo beijo em minha bochecha e se afastou. Ouvi a movimentação da menina pela cozinha enquanto fazia o almoço, depois de comer ficamos na sala, estava lendo o meu livro quando ouvi a garota correr para fora da sala.

— Demi? — A ouvi me gritar, me levantei do sofá abandonando meu livro no mesmo.

— Diga!

— Você precisa me guiar até a sala.

— O que está aprontando?

— Só me guie, eu estou no seu quarto.

— Siga reto até atravessar a porta, depois vire a esquerda. — Ouvi os passos calmos dela.

— Santo Zeus, isso é... Aii!

— Cuidado com o aparador Selena. — Comentei segurando o riso. — Mas quatro passos e você está na sala.

— Como sabe?

— Só faça o que eu falei. — Resmungo. — Cuidado com a... — O gemido de dor dela me interrompeu. — Por Zeus, quer se quebrar menina? Não posso dirigir até um hospital.

— E agora?

— Oito passos para frente e você chega no sofá. — Ouvi ela caminhando devagar, voltei a me sentar e não demorou muito para ela se sentar ao meu lado.

— Ok, acho que sei um pouco como se sentiu ao ter que aprender a andar por sua casa sem poder enxergar.

— Eu ganhei muitos roxos até aprender. — Murmurei.

— Imagino... Quer saber como o dia está?

— Por favor.

— O céu está em um azul bem claro mas com mais nuvens que ontem, acredito que seja uma chuva vindo. Suas flores estão lindas demais, acho que é a minha parte favorita da sua casa. Ah, e um gatinho apareceu aqui quando você estava na biblioteca isolada. Ele era tão bonitinho, era um filhote de pelagem bem branquinha e os olhos verdes. O miado dele era tão lindinho Demi. — Sorri.

— Deve ser adorável.

— Você podia ter um bichinho sabia? Ele te faria companhia quando eu não estivesse aqui.

— Não, ele iria sujar toda minha casa e eu poderia acabar pisando.

— É só educar ele.

— Prefiro não arriscar. — Ela soltou um baixo risinho.

— Tudo bem Demi.

Beautiful Eyes - SemiWhere stories live. Discover now