Capítulo 57 - Kadash II

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Hoje, tenho o luxo de uma janela. Observar o lado de fora, nosso corpo andando como se fôssemos os reis do mundo.

Ele é.

Maori murmura pra mim, dizendo para me manter quieto, ou perderei isso também. Nossa cabeça está pesada essa manhã, temos uma coroa nova. Ela é de uma pedra escura e brilhante que não conheço, e me dá calafrios. Mas logo eles param, pois Maori sibila e eu me encolho, essas pequenas demonstrações são proibidas.

Foi difícil no começo, doía, mas eu percebi que se eu o deixasse usar minha mente, pararia de doer. Não tenho motivos para lutar. Não me lembro deles.

Me lembro das memórias do fogo. Da felicidade lânguida, partida em pedaços pelo egoísmo. Me lembro de um sorriso gentil, e de sangue e ossos quebrados.

Me lembro de cada parte do que nunca foi meu. Até que eu não saiba onde ele termina e eu começo.

Mas tem uma memória que sempre me atrai. Um rosto, que me faz queimar de ódio e também sentir calma, um extremo de sentimentos que faz nossa cabeça doer. Maori não sabe, mas eu lembro de seu rosto e sinto o seu toque em minhas mãos.

Vasculhei as memórias dele para descobrir o nome dela. E nesse dia, o meu baú de memórias estremeceu. E eu tive vontade, real e vívida de abrí-lo. Mas ela foi abafada por um lampejo de emoções alheias, que me fizeram esquecer isso.

Me pergunto se, alguma hora, ele vai cansar de mim e me fazer desaparecer.

Talvez apenas esteja esperando que eu deixe.

Escute principezinho.

A voz canta em meus ossos.

Hoje vai ser um dia divertido, vai dar um passeio. O que acha de liderar duzentos mil soldados?

Dizer algo não faria diferença, mesmo se eu pudesse abrir a boca.

Vai ser um jogo curioso para a nossa ratinha. Vamos ver até onde ela rói o queijo.

Ah... A garota das memórias. Fogo queima em minhas veias e Maori sente isso. Ele sente tudo o que eu sinto e vice e versa. Depois de um tempo, me acostumei. Uma gargalhada.

Você vai ficar na coleira. Para que eu possa ver aquele rostinho quando ela chorar.

Por que ela choraria?

Porque ter você, principezinho, é a minha carta magna. Um golpe que não precisa tocar para ferir. Você não vê a graça nisso tudo?

Posso sentir o sorriso insano por trás das palavras.

Vai ser divertido. Divertido. Divertido. O melhor jogo que já joguei de fato. Nem teria tentado matá-la se soubesse que seria uma oponente tão incrivel.

Quer que eu a mate?

Claro que não. Esse é nosso momento especial. Terá de ser aqui, quando ela vier nos encontrar! Emocionante, claro. Vamos fazer um lindo espetáculo. Como daquela outra vez.

Dou de ombros, mas algo se agita com a ideia.

Maori volta para o próprio corpo. É assustador, o sentimento. Eu estou tão acostumado que é como se uma parte da minha alma estivesse faltando. Parece haver espaço demais aqui dentro. Tanto, que me sufoca.

E caminhar se torna estranho. Falar, ainda pior. Então me mantenho calado, na maior parte do tempo, e quieto. Só quando necessário e quando a coleira invisível me dá um puxão, para me lembrar de que eu devo agir por mim mesmo, é que o faço.

A inércia pode se tornar um vício.

O exército é incontável. Milhares de soldados vazios, como eu. Milhares deles que só se lembram de mover-se quando precisam lutar. Me sinto confortável entre eles; igual.

Talvez foi por isso que eu não pensei nem por um segundo quando marchamos para Arnlev. Nem quando fazemos um cerco na cidade, e disparamos saraivadas de flechas contra os exércitos. Lidero-os a marchar além da fome e da exaustão.

E não paro quando aquele rosto conhecido me vê, e desaba no chão.

A coleira é puxada. Vá.

Eu agarro minha espada e desço do cavalo, na frente das tropas.

Uma magia me faz parar com os pés presos no chão, implorando que eu não viesse. Mas eu a quebro e a ignoro, lançando um caminho de gelo  a minha frente.

Então as tropas se chocam.

E eu disparo magia de destruição contra ela, com a gargalhada de deleite do rei em meus ouvidos.

Rayrah desvia, ela usa uma armadura dourada e sua pele escura brilha contra o sol. Ela ergue a adaga na minha direção, a respiração entre cortada. Mas determinada. E linda.

E ela ataca.

Enquanto nossos exércitos se destruíram a nossa volta, nossas armas se chocam, uma de gelo e uma de magia pura, vermelha como rubi.

A golpeio com força no rosto, ela trava me braço atrás das costas, o nariz sangrando, congelo sua pele onde me toca. Rayrah grita e me solta com uma explosão de magia. Rolo para longe e ergo a mão onde estou, a espada flutuando até mim.

- Eu vou matar você hoje. - Ela diz esfregando o sangue do nariz. - E espero que possa me perdoar, por libertar você.

Essa palavra me faz parar. Libertar.

Sinto um gosto amargo na boca quando a coleira é puxada com força e eu não me movo.

A nossa volta, o caos se instala, corpos estão começando a criar pilhas e o cheiro de sangue começa a ficar insuportável com o calor. Uma guerra de magia e ruína. Os tambores de guerra ressoam e eu volto a atender o chamado daquela corda invisível, que repuxa um sorriso que não é meu em meus lábios. E eu me esqueço que posso falar.

Me lanço contra ela e as lâminas cantam. Rayrah gira e me atinge abaixo das costelas. O sangue jorra, apenas mais uma gota em meio à batalha. Não sinto dor. Seguro seu braço a passo por cima do ombro, fazendo seu corpo se chocar com a terra num estalo. Ela grunhe e usa sua magia para me lançar no ar, e eu abro um caminho entre os soldados, sinto uma ou duas costelas estalarem. Levanto no mesmo instante, enquanto ela caminha pra mim, com duas bolas de energia nas mãos, crescendo e crescendo.

Conjuro exatamente a mesma coisa, por nosso poder ser o mesmo, nossa herança amaldiçoada. Apesar de eu saber que ela possui muito mais poder sob aquela pele.

Ela lança o poder contra mim e no mesmo instante que eu lanço o meu. Nossa magia se choca, com uma explosão que frita tudo em volta num círculo de destruição.

Maori gargalha em meus ouvidos.

A batalha continua, durando até a noite e ao nascer do sol, eu não sinto uma gota de cansaço em meus ossos, mas as pernas de Rayrah estão tremendo.

Ela podia ter te matado mais cedo. Mas está com medo.

- Não me atrapalhe. - Falo para ele. E Rayrah olha para mim com intensidade. Antes de algo na sua expressão mostrar entendimento, e tristeza. Eu ataco, até meu poder não passar de um sopro em minhas veias, até estar lutando puramente corpo a corpo e o alvorecer ser uma lembrança.

Mas Rayrah ainda possui magia. Muita.

E ela usa seu poder para me prender no chão, deitado em sangue alheio. As amarras invisíveis não cedendo, não importa o quanto eu me debatesse.

Ela se aproximou, o rosto uma máscara fria. Os olhos como esmeraldas mais duras que diamantes.

Ela se abaixa sobre mim, com a adaga sobre meu pescoço e olha no fundo de meus olhos. Por um momento, suspiro fundo e penso: Finalmente...

Ela crava a adaga no chão ao lado da minha cabeça. Com um grito de dor e ódio, uma onda de magia varre todo o campo de batalha, e os meus soldados restantes se tornam cadáveres, magia tomando suas vidas com um sopro.

Maori estava certo, ela podia ter me matado.

E uma parte de mim ficou decepcionada por não o fazer.

As Crônicas de Rayrah Scarlett - Esperança Em Arnlev [RETIRADA EM 25/08/22]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora