Capítulo 2 - P.O.V Josh Tirr

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Os pássaros cantam, as folhas das árvores parecem reluzir com os raios solares, o dia está lindo. Mas eu não tenho tempo para admirá-lo.

O príncipe mondiano geme pavorosamente quando rasgo e tiro a camiseta empapada de sangue do seu corpo. O tecido estava grudado no ferimento. Uma espada foi fincada no tórax, em meio à sexta e a sétima costela, o sangramento não para. O garoto ruivo faz uma careta ao meu lado, o corte está feio.

Esfrego os olhos, cansada. Kadash não me deixou dormir nem uma hora durante essa noite, gemendo e gritando tanto que fiquei temerosa de os soldados nos encontrarem.

Kadash estremece e se contorce. Temos que fechar o ferimento antes que infeccione, e temos que parar a hemorragia.

- Ei, me dê aquela adaga, por favor. - ele aponta para a adaga deixada na grama a alguns metros de mim.

- O que vai fazer, Ruivo? - eu pergunto desconfiada mas lhe passo a adaga mesmo assim.

- Cauterização. Temos que fechar isso ou ele morre. - ele levanta e vai até nossa pequena fogueira, põe a ponta da adaga nas chamas e espera. Kadash continua gemendo e se contorcendo. De repente ele começa a tossir, tossir muito sangue. Começa a se engasgar. Não sei o que está acontecendo mas sei que Kadash pode morrer.

- RUIVO! - chamo desesperada, sem saber o que fazer. Charslie olha para nós e arregala os olhos.

- Deite-o de lado! Os pulmões estão se enchendo de sangue! - ele grita sem tirar a adaga do fogo. Viro o príncipe de lado e ele para de engasgar, estabilizando a respiração.

O ruivo corre até nós com a adaga em brasas, a ponta num tom de amarelo férreo. Ele estende-a pra mim.

- O quê?! Eu... eu não! - me afasto. Não sei fazer isso. Posso acabar piorando as coisas.

- Ouça. Isso vai doer muito, eu vou ter que segurá-lo. Você vai cauterizar o ferimento, Josh. - ele diz sério. Parece ser alguém completamente diferente daquele garotinho de ontem à noite. Alguém que vai salvar Kadash.

Respiro profundamente buscando forças. Charslie me passa a adaga, encaro a lâmina quente desafiando-a. O ruivo segura Kadash pelos ombros.

Ponho a adaga fervente no ferimento.

O grito do príncipe é agonizante. Tão alto que me faz querer levar essa adaga para longe dele. Mas continuo firme, até Charslie dizer para parar.

***

Respiro fundo encostada numa árvore. Desejo com todas as forças que meu irmão esteja bem. Que Ray esteja a salvo.

Estou com fome.

- Ruivo. - Charslie olha para mim com uma expressão cansada. Ele ficou cuidando dos outros ferimentos do príncipe, mas há outra coisa que o incomoda, não sei o que é. - Vou caçar.  Acenda a fogueira.

Pego a adaga que usamos em Kadash e entro na mata.

Minha mente vagueia por mil momentos e não consigo ordenar como cheguei aqui. Perdida num bosque com um príncipe inconsciente e um ruivinho calado.

Vejo pegadas de um animal no solo. Patas de javali. Estão frescas. Sigo as pegadas silenciosamente. O bicho é roliço, anda pesadamente, tem presas grandes e pêlo cor de lama. Abro as asas e alço vôo em silêncio. Caio em cima do animal com os braços abertos, me agarro no pescoço do bicho e ele corre.

- Socorrooo!! - o javali corre comigo nas costas, os galhos batem no meu rosto e eu tenho certeza que engoli mais de cinco folhas. O bicho corre como o vento, fazendo oinc-oinc desesperado.

- Que diabos?! - a voz do ruivo some no meio dos meus gritos.

De repente só vejo uma cabeleira vermelha antes de ser lançada e bater com a cara numa árvore. O javali tenta se levantar, chacoalhando a cabeça desnorteado. Pego a adaga e corto sua garganta.

Levanto o olhar e vejo o ruivinho desviando o olhar do animal ensanguentado. Charslie parece querer vomitar. Graças à ele temos nosso almoço.

- Consegue ver feridas humanas maiores que suas mãos mas não consegue me ver matar um javali? - pergunto com um sorriso torto.

- Humanos são humanos. Traem, mentem, enganam, matam, ferem, destroem, tratam uns aos outros pior do que lixo. Animais são inocentes, sujeitos à nossa maldade no mundo. - ele murmura me fazendo sentir mal. Faço uma pequena oração pelo javali, pedindo desculpas e agradecendo por podermos nos alimentar.

Voltamos ao nosso "acampamento" em silêncio. Não conheço Charslie mas tudo nele indica o quanto está triste. Talvez eu possa fazer com que ele se abra.

Assamos o javali. Mal consigo comê-lo, encharcada de culpa. Ainda que com fome o gosto está horrível, o ruivo me fez perder a fome.

- O que te faz pensar que todos os humanos são tão ruins? - sussurro com as mãos estendidas para o calor da fogueira.

Ele fecha a cara. Fica calado olhando as chamas da fogueira. Continuo falando apesar da sensação de estar falando sozinha.

- Eu também pensei isso por muito tempo. Minha vida nunca foi das melhores, sabe? - dou uma risada desgostosa. Me sinto um pouco controladora, mas é assim que eu faço as coisas, conto um pouco sobre mim, nada muito revelador e a pessoa fica mais confortável a falar sobre ela. É simples e fácil de saber com quem estou lidando. - Fui praticamente vendida ao governo. Você sabe do que estou falando; a Base. Não tive família a maior parte da vida e agora sequer sei se meu irmão está vivo. Eu tenho muitos motivos para odiar este mundo infeliz, mas não odeio. E você?

O ruivo bufa e remexe as brasas com um galho. Os olhos dele refletem o fogo, fazendo o reflexo se tornar de uma cor estranha, um misto de todas as outras.

- Eu não consigo lembrar. - murmura baixinho. - Eu sei de muito pouco. E vejo esses flashes da minha vida, mas... eu não consigo ordená-los. O pouco que me lembro me faz ter certeza que o mundo é um lugar egoísta, cruel e sombrio. Até mesmo quem amamos pode nos machucar.

Ele leva a mão até o cachecol listrado no pescoço, lembrando de algo ruim. Não está frio. O cachecol esconde alguma coisa que ele não vai me contar.

- Isso pode parecer bem indelicado, mas eu queria esquecer de tudo às vezes. Acordar uma manhã sem memórias e começar tudo do zero
Seria bom esquecer tudo de ruim. - bocejo, uma coruja voa logo acima de nossas cabeças. - Mas eu tenho que lembrar. Sou responsável por meus amigos, não deixar que morram é uma boa idéia.

Viro para o lado e curvo as asas. Uma para me cobrir e outra para fazer de colchão. Antes de cair num sono leve e sem sonhos, ouço Chasrlie murmurar:

- Eu também era responsável pelos meus.

As Crônicas de Rayrah Scarlett - Esperança Em Arnlev [RETIRADA EM 25/08/22]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora