Os pássaros cantam, as folhas das árvores parecem reluzir com os raios solares, o dia está lindo. Mas eu não tenho tempo para admirá-lo.
O príncipe mondiano geme pavorosamente quando rasgo e tiro a camiseta empapada de sangue do seu corpo. O tecido estava grudado no ferimento. Uma espada foi fincada no tórax, em meio à sexta e a sétima costela, o sangramento não para. O garoto ruivo faz uma careta ao meu lado, o corte está feio.
Esfrego os olhos, cansada. Kadash não me deixou dormir nem uma hora durante essa noite, gemendo e gritando tanto que fiquei temerosa de os soldados nos encontrarem.
Kadash estremece e se contorce. Temos que fechar o ferimento antes que infeccione, e temos que parar a hemorragia.
- Ei, me dê aquela adaga, por favor. - ele aponta para a adaga deixada na grama a alguns metros de mim.
- O que vai fazer, Ruivo? - eu pergunto desconfiada mas lhe passo a adaga mesmo assim.
- Cauterização. Temos que fechar isso ou ele morre. - ele levanta e vai até nossa pequena fogueira, põe a ponta da adaga nas chamas e espera. Kadash continua gemendo e se contorcendo. De repente ele começa a tossir, tossir muito sangue. Começa a se engasgar. Não sei o que está acontecendo mas sei que Kadash pode morrer.
- RUIVO! - chamo desesperada, sem saber o que fazer. Charslie olha para nós e arregala os olhos.
- Deite-o de lado! Os pulmões estão se enchendo de sangue! - ele grita sem tirar a adaga do fogo. Viro o príncipe de lado e ele para de engasgar, estabilizando a respiração.
O ruivo corre até nós com a adaga em brasas, a ponta num tom de amarelo férreo. Ele estende-a pra mim.
- O quê?! Eu... eu não! - me afasto. Não sei fazer isso. Posso acabar piorando as coisas.
- Ouça. Isso vai doer muito, eu vou ter que segurá-lo. Você vai cauterizar o ferimento, Josh. - ele diz sério. Parece ser alguém completamente diferente daquele garotinho de ontem à noite. Alguém que vai salvar Kadash.
Respiro profundamente buscando forças. Charslie me passa a adaga, encaro a lâmina quente desafiando-a. O ruivo segura Kadash pelos ombros.
Ponho a adaga fervente no ferimento.
O grito do príncipe é agonizante. Tão alto que me faz querer levar essa adaga para longe dele. Mas continuo firme, até Charslie dizer para parar.
***
Respiro fundo encostada numa árvore. Desejo com todas as forças que meu irmão esteja bem. Que Ray esteja a salvo.
Estou com fome.
- Ruivo. - Charslie olha para mim com uma expressão cansada. Ele ficou cuidando dos outros ferimentos do príncipe, mas há outra coisa que o incomoda, não sei o que é. - Vou caçar. Acenda a fogueira.
Pego a adaga que usamos em Kadash e entro na mata.
Minha mente vagueia por mil momentos e não consigo ordenar como cheguei aqui. Perdida num bosque com um príncipe inconsciente e um ruivinho calado.
Vejo pegadas de um animal no solo. Patas de javali. Estão frescas. Sigo as pegadas silenciosamente. O bicho é roliço, anda pesadamente, tem presas grandes e pêlo cor de lama. Abro as asas e alço vôo em silêncio. Caio em cima do animal com os braços abertos, me agarro no pescoço do bicho e ele corre.
- Socorrooo!! - o javali corre comigo nas costas, os galhos batem no meu rosto e eu tenho certeza que engoli mais de cinco folhas. O bicho corre como o vento, fazendo oinc-oinc desesperado.
- Que diabos?! - a voz do ruivo some no meio dos meus gritos.
De repente só vejo uma cabeleira vermelha antes de ser lançada e bater com a cara numa árvore. O javali tenta se levantar, chacoalhando a cabeça desnorteado. Pego a adaga e corto sua garganta.
Levanto o olhar e vejo o ruivinho desviando o olhar do animal ensanguentado. Charslie parece querer vomitar. Graças à ele temos nosso almoço.
- Consegue ver feridas humanas maiores que suas mãos mas não consegue me ver matar um javali? - pergunto com um sorriso torto.
- Humanos são humanos. Traem, mentem, enganam, matam, ferem, destroem, tratam uns aos outros pior do que lixo. Animais são inocentes, sujeitos à nossa maldade no mundo. - ele murmura me fazendo sentir mal. Faço uma pequena oração pelo javali, pedindo desculpas e agradecendo por podermos nos alimentar.
Voltamos ao nosso "acampamento" em silêncio. Não conheço Charslie mas tudo nele indica o quanto está triste. Talvez eu possa fazer com que ele se abra.
Assamos o javali. Mal consigo comê-lo, encharcada de culpa. Ainda que com fome o gosto está horrível, o ruivo me fez perder a fome.
- O que te faz pensar que todos os humanos são tão ruins? - sussurro com as mãos estendidas para o calor da fogueira.
Ele fecha a cara. Fica calado olhando as chamas da fogueira. Continuo falando apesar da sensação de estar falando sozinha.
- Eu também pensei isso por muito tempo. Minha vida nunca foi das melhores, sabe? - dou uma risada desgostosa. Me sinto um pouco controladora, mas é assim que eu faço as coisas, conto um pouco sobre mim, nada muito revelador e a pessoa fica mais confortável a falar sobre ela. É simples e fácil de saber com quem estou lidando. - Fui praticamente vendida ao governo. Você sabe do que estou falando; a Base. Não tive família a maior parte da vida e agora sequer sei se meu irmão está vivo. Eu tenho muitos motivos para odiar este mundo infeliz, mas não odeio. E você?
O ruivo bufa e remexe as brasas com um galho. Os olhos dele refletem o fogo, fazendo o reflexo se tornar de uma cor estranha, um misto de todas as outras.
- Eu não consigo lembrar. - murmura baixinho. - Eu sei de muito pouco. E vejo esses flashes da minha vida, mas... eu não consigo ordená-los. O pouco que me lembro me faz ter certeza que o mundo é um lugar egoísta, cruel e sombrio. Até mesmo quem amamos pode nos machucar.
Ele leva a mão até o cachecol listrado no pescoço, lembrando de algo ruim. Não está frio. O cachecol esconde alguma coisa que ele não vai me contar.
- Isso pode parecer bem indelicado, mas eu queria esquecer de tudo às vezes. Acordar uma manhã sem memórias e começar tudo do zero
Seria bom esquecer tudo de ruim. - bocejo, uma coruja voa logo acima de nossas cabeças. - Mas eu tenho que lembrar. Sou responsável por meus amigos, não deixar que morram é uma boa idéia.Viro para o lado e curvo as asas. Uma para me cobrir e outra para fazer de colchão. Antes de cair num sono leve e sem sonhos, ouço Chasrlie murmurar:
- Eu também era responsável pelos meus.
ESTÁ A LER
As Crônicas de Rayrah Scarlett - Esperança Em Arnlev [RETIRADA EM 25/08/22]
General Fiction*É recomendável ler o 1° e o 2° livro antes de ler esta sinopse* O trono foi tomado. Évbad e Mondian estão em completo caos. Rayrah Scarlett foi dada como morta. Josh e Charslie tentam sobreviver à perseguição do exército do rei, vão precisar prot...