capítulo 51 - P.O.V Will

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Já faz um mês. Quase dois.

O oráculo não disse uma palavra nesse meio tempo.

Ela tem me alimentado, e me dado um lugar para dormir. E todos os dias ela me faz passar o máximo de tempo submerso no lago atrás da colina.

Mas nada de uma profecia. Nada de passar seu poder para mim, como prometeu anos atrás que faria, quando eu ainda era um garoto travesso que começava sua longa carreira de traidor. No dia em que eu e uma dezena de garotos de rua decidimos pregar uma peça no ser mais antigo que ainda podia ser encontrado. Ao contrário deles, eu tinha um destino e uma dívida com o Oráculo, e foi por isso que sobrevivi.

A mulher jovem de cabelos prateados moía alguma erva sem olhar pra mim. Ela não mudou nada desde a última vez que a vi, arrancando a alma de uns garotos há alguns anos. Imagino se ela saiba das coisas terríveis que fiz  ultimamente, e por isso não vai me ajudar, ou me punir.

- Eu sei o que você fez. - ela fala pela primeira vez desde que bati em sua porta, numa noite chuvosa totalmente desamparado. - Você deveria saber que possuir o Oráculo é a pior punição que alguém poderia receber.

Engulo em seco. Ela sabe, é claro, então por que não o passou ainda, se ele lhe é uma punição?

Seu olhar cor de rubi se tornou melancólico. Imagino quanto tempo se passou sem que ele mudasse, sem que uma única ruga surgisse, dezenas de anos? Centenas?

- Minha punição tem durado quatrocentos e sessenta e quatro anos, onze meses, vinte e oito dias e dezenove horas. - ela responde lendo minha mente.

- O que isso quer dizer?

- Quer dizer que o Oráculo vai me abandonar em dois dias. Porque minha dor é predestinada a durar quatrocentos e sessenta e cinco anos. - ela sorri, com algo próximo à alívio. E isso me faz estremecer até os ossos.

- Eu fiz tantas coisas ruins assim a ser predestinado a passar vidas com o espírito dos enigmas preensando minha alma até o fim? - estalo os dedos, tentando diminuir o peso das palavras.

- Não sei. - ela responde sincera. - Ele te escolheu, não fui eu. - ela termina a mistura de ervas e colocou no chá.

- Como era... antes de você ser escolhida? - ela para, as mãos no ar, a boca entreaberta. Me arrependo das palavras no mesmo instante.

Ela se vira para mim e sorri. Um sorriso grande e verdadeiro.

- Eu conheci um homem que fez da minha vida um sonho. Fui uma grande feiticeira e uma grande heroína. Tentei fazer o mundo entender uma coisa, mas eles nunca entenderam, e duvido que algum dia entenderão. Talvez seja melhor assim. - ela põe o chá em duas canecas e se sentou na minha frente. - Graças à isso minha penitência durou tanto.

Fito o lado de fora da cabana, sem ter coragem de encará-la. Gostaria de saber sua história e seu nome. E se, para ela, sequer sou digno de ter o Espírito do Oráculo.

Me sobressalto quando sinto seus dedos tocarem os meus. Eles são frios, como o de um cadáver.

Ela solta uma risadinha, os lábios pintados de preto se curvando levemente. Eu sou um cadáver.

- Me fale seu nome. - murmuro.

- Eu já tive muitos. Mas meu favorito é Kaltanon.

Minha mente dá um estalo.

- Kaltanon Aramantya, a Senhora das Sete Espadas?!

Ela aperta as mãos.

- É bom saber que ainda lembram desse nome. Eu pensei que depois da minha morte só lembrariam de...

- Haruna Bico de Ferro, a Cavaleira do Fogo Sombrio. - completo. Eu conheço a história. A grande cavaleira que tentou convencer a Ordem do Primeiro Rei que Magia Sombria podia ser usada para o bem. - Você é... tão velha assim?

- Que deselegante. - ela brinca. - Mas sim, e esse era o nome que eu pensei que seria lembrado.

Um calafrio me percorre. Talvez minha maldição durasse tanto quanto, talvez dure mais. Talvez dure tanto que eu veja este reino ruir e outro nascer. E ao contrário de Kaltanon, ninguém lembrará do meu nome.

- William.

Verei meu pai morrer, mesmo que eu o reviva, e meu esforço será em vão, porque continuarei sozinho, até que o Oráculo me destrua.

- William me ouça. - Kaltanon eleva a voz, eu derrubo o chá.

- Desculpe.

Ela retira a toalha da mesa, parece afetada, deve ter ouvido meus pensamentos.

- Sinto muito. - Ela diz quando se volta pra mim. - Esse é o seu destino William. Assim como era o meu. - A mulher mais velha do mundo sai pela porta, me levando com ela. - Desde o começo, o que fiz ou o que faria não importava para o Oráculo, apenas influenciava o tempo que passaria com ele. Eu o teria, mesmo que não tivesse sido consumida pelo poder do Fogo Sombrio, mesmo que eu não tivesse perdido o controle e destruído minha Legião. O Oráculo viria até mim, ainda que eu fosse a mais pura das donzelas. - ela fecha os olhos, como se sentisse o Espírito revirando-se. - Não é sobre o que você fez. Houve Oráculos antes de mim que ninguém jamais soube seus nomes.

- Diz isso para que eu me conforme em ter perdido minha vida.

- Não é culpa do Oráculo.

E não era. A culpa era minha.

- Como vai ser quando ele te deixar? - cruzo os braços, observando as colinas verdes sem vê-las de verdade.

- Morrerei.

- Ah.

Continuamos em silêncio, por um longo tempo. Me sinto estúpido por ter dito apenas "Ah." Ela ri, sabe o que penso.

- Porque me faz entrar no lago todos os dias?

- Para que não seja doloroso quando o Oráculo entrar. - o seu sorriso desaparece, e agora ela fala com o peso das suas centenas de anos. - É difícil, principalmente na primeira vez. Então, se você estiver acostumado com os pulmões preensados, e a falta de ar, talvez não o machuque.

Eu não consegui dizer nada. Voltamos para nossa rotina de silêncio. Não consegui dormir naquela noite.

Eu sabia o que me esperava pela manhã.

Queria ter conhecido minha mãe. Talvez... eu não tivesse tantos arrependimentos hoje.

Quando acordei, Kaltanon estava de pé na porta do meu quarto. Os cabelos prateados pareciam mais opacos e os olhos de rubi estavam cansados.

Nós tomamos um café da manhã simples e silencioso. Então ela segurou minha mão com aqueles dedo frios e me disse que estava na hora.

Fomos até o jardim e ela se sentou numa das pedras grandes e cinzentas. Não havia cerimônia. Não havia nenhuma grande celebração. Nem mesmo um incenso ou um ritual.

Me sentei na frente dela, no chão.

Kaltanon sorriu. Meu corpo enrijeceu. Não consegui responder.

Ela tocou na minha testa e o Espírito do Oráculo saiu de sua boca. Espiralando enquanto a pele dela envelhecia e murchava.

Antes que eu pudesse perceber minha boca havia se aberto, o Oráculo deu uma volta e mergulhou.

A dor que seguiu fez meus olhos arderem. Meus pulmões dilataram e comprimiram. Meus olhos viram uma centena de imagens. Tempos, guerras, pessoas, reinos. Minhas unhas arranharam a terra quando eu senti aquilo indo mais afundo, percorrendo minhas veias até ultrapassar o limite do meu corpo mortal.

Trezentos anos e quarenta dias.

As Crônicas de Rayrah Scarlett - Esperança Em Arnlev [RETIRADA EM 25/08/22]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora