Capítulo 39

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O Medalhão está mesmo ali.

E ele é... perfeito.

Há uma espécie de magnetismo, que me puxa para cada vez mais perto, me fazendo querer tocá-lo. Como se nada mais existisse. Ergo a minha mão tão próxima dele.

Atswa a segura antes que nos toquemos.

- Você é a Genus Lapis, Rayrah. - ela diz com o olhar duro. - Eu não sei o que pode acontecer se o Medalhão se juntar a você. E a não ser que isso seja estritamente necessário, prefiro não descobrir.

Meus olhos esmeralda continuam fixos naquela peça, não consigo desviá-los. E a minha mão ainda suspensa no ar, alguns centímetros acima dele. Eu apenas... preciso tocá-lo.

- Rayrah. - A sacerdotisa tem que me puxar para longe. - Os únicos a tocarem nisto em milênios foram as Suma-Sacerdotisas, algumas sequer despertaram depois disso. Controle-se.

Ela me vira para ela, tirando o Medalhão do meu campo de visão e assim, me despertando do transe.

- Desculpe. Eu não sei o que deu em mim. De alguma forma ele... me atraiu. - franzo o cenho. - Talvez isso não seja seguro.

- E não é.

- Então por que me trouxe aqui? - me afasto um pouco, o magnetismo do Medalhão ainda me puxando, como uma garra em volta do meu corpo, ou um murmúrio atraente em meus ouvidos.

- Porque é o que você precisa.

Ela estende a mão para mim e eu a seguro. Sua outra mão toca o Medalhão, onde deveria estar a pedra. Fechamos os olhos.

Quando volto a abri-los num inspirar, não estou mais no templo. O ar é frio e a terra é seca. Meus pés descalços de encontro a ela estão sujos, um vazio no estômago me faz me curvar levemente. À minha volta, há uma vila desolada, casebres aos pedaços, pessoas às encostas, o vento uivando gélido ao bater nas esquinas.

- Fome, miséria. - a voz conhecida de Atswa ecoa no silêncio. Ela está atrás de mim, encoberta por um capuz branco que se destaca de forma surreal em meio ao cenário desolado. Ela está ali, mas não parece estar de verdade. - Esta é a sua primeira lição.

Abraço a mim mesma, o frio gelando meus ossos. A fraqueza da fome me fazendo arrastar os pés. Percebo, que o meu corpo não é o meu corpo, apesar da minha mente estar nele.

- Esse é o poder do Medalhão de Arasabeth. - esclarece Atswa, de alguma forma respondendo as questões da minha mente. - Ele nos dá a capacidade de estar em qualquer corpo, em qualquer tempo, em qualquer situação.

- E quem eu sou agora? Onde? Quando?

- Eu não sei.

Forço meus pés a caminharem pela rua, desviando de cacos de vidro e poças de lama. Meu peito ofegante sente uma ansiedade que não é minha, e eu sinto que preciso correr. Preciso chegar em casa, vê-la pela última vez. Aos poucos as informações chegam à minha mente, sei para onde ir e quem encontrar, e conheço os seus sentimentos da dona deste corpo, a saudade, a dor.

Vejo um barraco no final da rua. Feito de palafitas e trapos. Meu coração se aperta. Caminho até ele e entro com cuidado, vejo um leito e uma mulher idosa e adormecida deitada sobre ele. Ela parece cansada e doente, seus cabelos, que eram cor de caramelo, estão opacos, como uma palha. Seus olhos tem bolsas profundas, como abismos de miséria, seus lábios estão secos e rachados como o solo desta terra, as maçãs de seu rosto sugadas pelo grito da fome, deixam seu rosto côncavo e marcado. Um desespero agudo me faz correr para conferir se ainda está viva. Seu respirar me alivia.

- Querida... - ela engasga, acordando. - Você veio. - constata alisando meu rosto com os dedos ossudos e trêmulos. - Não achei que viria.

- Eu tinha que vir. - falo com a voz doce. As palavras não são minhas. Foram proferidas por um outro alguém, em um outro tempo. Olho em volta, um rato guincha, correndo para trás de uma pilha de madeira. - O que houve aqui?

Ela para por alguns instantes, remoendo algo na mente. Seus olhos vermelhos com veias estouradas em toda a extensão me fitam demoradamente.

- Talvez eu não me lembre tão bem... - ela fecha os olhos. - Já fomos um reino tão bonito, querida. Eu era uma criança na época. As pessoas ainda sorriam, e nós ainda tínhamos pães à mesa. Você nem sequer sonhava nascer. Eu me lembro do teu pai, correndo por essa rua antes de ela ser o sepulcro que é hoje. - ela suspira, seus lábios se franzindo em desgosto.

- Por favor, me conte mais. - suplico segurando as mãos dela.

- Tudo era calmo, leve, gentil e havia paz antes dos soldados chegarem, eles levaram as alegrias de toda essa cidade, e as minhas, levaram a teu pai, teu avô, a teu irmão, todos os outros. - uma lágrima escorre pelo cantinho do olho dela. - Queimaram tudo, levaram os bons por escravos, deixaram para nós o fogo e a terra seca. - ela cospe, a voz ácida. - A fome e a miséria.

- Me lembro de quando eu era criança. - novamente as palavras quase ensaiadas, ditas em dor. - Minhas bonecas tinham os panos sujos e os nomes da família que eu nunca teria. As brincadeiras eram fingir que tudo estava bem e que não teríamos apenas lama no jantar. Fingir que não estávamos sozinhas.

- Essa terra se tornou um inferno, Maryan. - ela cospe, revelando o meu nome. - Aqueles malditos não tinham respeito por ninguém. Não respeitavam nossas perdas, nossa casa ou nosso corpo. - ela fecha os olhos com uma expressão sombria. - Nós nos transformamos em cinzas aqui.

- Como eles chegaram? - pergunto com a voz entre cortada, um soluço no fundo da garganta.

- Nosso rei. Aquele desgraçado soberbo. - ela se energe de raiva. - Ele se endividou até os dentes, usou nossa terra até o fim dos nossos recursos, vendeu nossa energia, sugou os minérios e as plantas como uma maldita sangue-suga e quando viu que estava perdido para o reino de Asteron, se matou, nos deixando para afundar no abismo sozinhos. Você sabe as histórias, ouviu os sussurros desde que nasceu e sabe, em pouco tempo, todos deixaremos de existir.

- Não diga isso, não diga isso mamá! - suplico a idosa, ela sorri com uma tristeza velada.

- Eu já gastei todo o meu tempo neste mundo, querida. - ela acaricia minha bochecha com carinho. - Vi a felicidade, a fartura, a dor e a morte, vi a fome e o medo, a vergonha e o ódio. Eu tenho um coisa a te dizer antes de ir. Ouça. - os seus olhos desfocam, perdendo me para algo além. - Somos humanos, querida, crescemos e sentimos, cometemos erros. O maior deles é acreditar que há pessoas melhores que outras pessoas e, assim, abdicar da nossa paz e ferir o outro. Antes que eu me vá, preciso que me conceda, um último juramento, um último esforço como o que fez por toda a vida: Saia deste lugar. Seja humana. Não morra de fome, morra sem fôlego. Faça mais do que existir. Ainda que tudo... isso, pareça perdido, você não está.

Ela fecha os olhos. Ela sabe que é agora e eu também. As lágrimas chegam aos meus olhos. E eu ponho uma mão sobre a boca, contendo os soluços, e a outra apertando fortemente a mão mole dela. Mas ela não aperta de volta. Ela partiu, como muitos aqui já fizeram.

Meu peito dói. E eu derramo dezenas de lágrimas por ela. Eu posso nunca saber o seu nome, mas jamais vou esquecer suas palavras.

- Rayrah. - Atswa aparece atrás de mim, tremeluzindo com seu capuz brilhante. Ela estende a mão e eu a toco. Fecho os olhos e num instante...

Estamos de volta ao templo.

As Crônicas de Rayrah Scarlett - Esperança Em Arnlev [RETIRADA EM 25/08/22]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora