Capítulo 19

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Foi uma noite ruim, tensa, barulhenta. Uma chuva começou a cair e durou dois dias. Eu não saí de casa. Fiquei com Alice dentro daqueles muros e aquele quarto, entretendo-a e tentando manter a cabeça fria. Não aconteceu absolutamente nada de incomum, além do tédio e das minhas desconfianças. Miguel manteve contato até quando, segundo ele, estava para embarcar.

Miguel chegou numa manhã ensolarada, depois de várias horas de chuva fina. Vê-lo sair do carro e olhar para a casa me fez sentir um misto de alívio e raiva. A raiva era porque eu não tinha me esquecido de que aquela confusão toda era culpa dele.

Eu estava na janela gradeada olhando para fora, e Alice tinha acabado de dormir. Ela tinha acordado às cinco da manhã para brincar. Desci e vi Miguel conversando com os empregados. Os três estavam reunidos próximos ao carro numa espécie de conferência com cara de ter sido marcada antecipadamente. Foi rápido. Logo ele me viu e veio em minha direção com um sorriso contido. Deixei que ele me abraçasse e me desse um beijo na testa.

— Oi... Como está tudo por aqui? — falou.

— Tenho certeza de que os empregados já te disseram.

Ele não retrucou.

— E você? Cadê Alice?

— Eu estou com sono porque Alice acordou de madrugada para brincar. E ela acabou de dormir.

Como se tivesse se lembrado de algo, Miguel levou as mãos à cabeça. Voltou ao carro e pegou duas sacolas, e me entregou uma.

— Para mim? — perguntei, na falta de algo melhor para dizer.

— É só um presentinho. Não tive muito tempo...

— Ah, obrigada. Não precisava.

— Este é para Alice. Posso entregar eu mesmo quando ela estiver acordada?

— Claro! A não ser que seja algo perigoso, não precisa nem pedir.

— Não tem nada de perigoso.

Ainda sem jeito por ter recebido um presente inesperado, eu abri a sacola. Dentro tinha um embrulho bem feito, em papel estampado branco e vermelho. Rasguei o embrulho e nele tinha um vestido de cetim azul escuro. Estranhei. Pisquei. Oi? Não é possível! Era o último presente que eu esperava ganhar. Miguel sorriu ao notar meu embaraço.

— É da medida exata de um que você usa. Achei que você fosse gostar.

— Sim, eu gostei, é que... — Onde é que eu ia usar aquilo? — É que eu não esperava ganhar um vestido assim, do nada.

— Use ele esta noite. Há um restaurante maravilhoso na cidade, e nós poderíamos jantar lá.

— Jantar num restaurante maravilhoso usando este vestido caro que é do tamanho exato de outro que você me viu usando? É, parece interessante. — Balancei a cabeça para espantar a vontade de ser ainda mais sarcástica. — Eu estava mesmo com vontade de sair.

— Então vou fazer uma reserva.

— E eu vou acreditar que essa reserva ainda não foi feita. — Mudei o tom e falei o que estava querendo. — Espero que você esteja com tempo para conversar, Miguel. Eu quero algumas respostas sobre os acontecimentos.

Miguel respirou fundo e passou a mão na parte de trás do pescoço. Deu um sorriso encantador.

— Estou com tempo. Posso entrar em casa, tomar um café, descansar, e depois falamos sobre isso?

— É, pode ser.

Miguel entrou e se sentou no sofá. Se esticou todo e fechou os olhos, e então eu reparei em como ele parecia cansado. Para estar em casa a essa hora, ele devia estar viajando há várias horas, a noite inteira, pelo menos. Quando dona Teresinha estava prestes a chegar com o café, eu mudei de ideia. Resolvi ser um pouco mais complacente.

— Talvez seja melhor você se deitar, Miguel — falei. — Mais tarde conversamos. Estou ansiosa, mas posso aguentar mais algumas horas.

Com a cabeça encostada no alto do sofá, Miguel sorriu com as pálpebras semicerradas, num gesto muito sensual. Céus, aquele homem tinha um rosto perfeito! E o corpo dele marcando na roupa? Quando eu me atrevia a olhar sem raiva ou receio, eu sentia os efeitos daquela perfeição. Mas ele ainda me devia respostas.

— Depois de um banho, um café e um pouco de silêncio eu vou ficar ótimo. Não estou me esquivando das suas perguntas.

— Vou subir e ver se Alice ainda está dormindo. Entendi a indireta do silêncio.

Ele se agitou no sofá.

— Não foi o que eu quis dizer, Ester.

— Tudo bem. Estou lá em cima, se precisar de mim.

Subi e fui direto para o banheiro. Olhei no espelho e uma mecha de cabelo rebelde me fez lembrar tia Elda me recriminando por ser tão displicente quando o assunto era tentar impressionar um homem. Quase nada de maquiagem, cabelo arrumado às pressas, roupa escolhida pela praticidade de ser a primeira perto da porta do guarda-roupas. Ajeitei a mecha, apesar de meu plano se limitar a me deitar perto de Alice, e saí do banheiro. Miguel poderia aparecer querendo tomar banho. Naquela casa enorme, só havia um banheiro na parte superior, um lavabo no térreo, entre a sala e a sala de jantar, e um banheiro para empregados nos fundos. Era uma casa antiga que ficava devendo em conforto e modernidade.

Alice estava dormindo como um anjinho, de costas com os braços e as pernas abertas. Linda, com as bochechas rosadas e os cabelos desgrenhados. Me deitei ao lado dela e fechei os olhos sabendo que não conseguiria dormir. Passei bastante tempo ouvindo pássaros nas árvores lá fora, o vento nas cortinas, algum besouro nas flores abaixo da janela, até que ouvi o chuveiro sendo ligado a poucos metros de onde eu estava. Miguel estava tomando seu banho reparador pós-viagem.

Com o delicioso barulho de água caindo, e imaginando o caminho que ela estava fazendo antes de atingir o chão, eu cochilei. Acordei com um movimento perto de mim, e um cheiro bom nas minhas narinas. Abri os olhos e vi Alice sentada segurando um lindo vestidinho branco, e Miguel abaixado a poucos centímetros de mim, com o cabelo ainda molhado penteado para o lado, a barba feita e os olhos escuros risonhos embaixo dos cílios espessos.

— O que foi? — perguntei.

— Achei que você não estivesse dormindo. Me desculpe por acordá-la — disse ele, com um sorriso sincero. A embalagem do vestido estava ao lado dele, no chão, o mesmo papel branco e vermelho.

— Acabei de cochilar. Ouvi você tomando banho.

— Isso foi há uns bons quinze minutos.

Caramba! Eu tinha pegado no sono!

— Bom, eu... eu estava cansada.

— Tomei a liberdade de comprar um vestido para ela. O que você achou?

Passei os dedos na peça de roupa, ainda nas mãos de Alice, e senti o tecido. Era agradável e tinha bordados bem feitos. Alice ainda estava apática, como sempre ficava logo que acordava. Sua carinha parecia de mau humor.

— É lindo o vestido. Quer que ela use hoje à noite?

— Sim, se possível.

— Então vou lavar rapidinho.

— Vai ficar lindo nela.

— Vai sim.

Deixei Alice com Miguel, ela resmungando, e fui lavar o vestido com o cuidado que o tecido exigia. Estava cedo, o sol estava quente, então daria tempo de secar, já que Miguel tinha planos curiosos para aquela noite. Seria alguma festa? Provavelmente não. Ele nunca nos levaria numa festa. Mas o que ele estaria pretendendo?

...

Continua...

Insensatez (Em Andamento)Where stories live. Discover now