você não custamava ser assim

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As ruas de Sokcho cheiram a peixe frito e terra molhada. Passando pelo posto da Hyundai, empurrando a cadeira de rodas do papai, lembro-me das vezes que corri por aqui para pegar um ônibus lotado. As coisas mudaram tanto, impossível acompanhar um pouco longe. Não reconheço muita gente, mas algumas olham a mim como se estivessem tentando reconhecer-me. E quando as rodinhas emperram ao atravessarmos a rua, de soslaio capturo o início da rua onde aconteceu meu primeiro beijo. Tinha sangue e gosto de maquiagem. Wooyoung iria rir com essa história outra vez, eu aposto. Mas estou voltando para uma época em que ele não existia na minha vida. Parece que enfiei-me de volta em mim.

Há comércios novos, outros mudaram a fachada. Mas a sorveteria esquisita continua no mesmo lugar, onde sempre esteve. Pergunto-me como nunca faliu. Nunca abria nos dias de calor. Mas quando o céu caía, lá estava a senhorinha de vestido largo e coque frouxo a abrir as portas, pondo aquela placa desbotada para fora e sentando-se para assistir a água sugar todo o enxuto de outrora.

O mercadinho ladrão ainda existe, com suas garrafas de Coca-Cola imensamente caras e sucos fora da validade. Os preços nem um pouco atrativos estão na minha cabeça agora. E, de repente, até o céu me lembra de quando eu estava a esperar os meninos para sairmos e ficava a admirar a lua em plena luz do dia. Sempre fui teu admirador. Sempre. E agora que estou voltando para casa, sinto um friozinho na barriga ressecar meus tecidos. É ansiedade com medo.

Daí vamos seguindo as ruas, uma desaguando na outra, todo mundo quieto. Mamãe caminha ao meu lado carregando as coisas, falando sobre algumas precauções que deveríamos tomar em relação ao papai. Disse que foi muito grave, mal poderá comer. Mamãe diz que, como a mandíbula do papai está doendo, ele poderá ficar calado. E então ele responde dizendo que pode falar muito bem e que pode gritar também, daí eles começam a brigar e tudo volta aos velhos tempos.

Se papai estivesse andando e eu estivesse dez centímetros menor, com meus tênis sujos e cadarços coloridos, seria como antigamente. Pois eu estaria pedindo por sorvete, mas eles estariam brigando sobre coisas mais idiotas que lápis de cor roubados da minha irmã. E quanto mais eu ando, algo em mim abre e abre e se escancara e fica exposto e o vento passa e arde e arde e queima. Mas eu sinto que é melhor que abra até o fim mesmo. Não sei o porquê.

Assim que viramos a esquina, sinto-me anestesiado. Não aquela morfina que nos retarda, mas sim aquele sentimento torto que sentimos em meio àquelas canções onde o cantor parece chorar e os únicos instrumentos que compõe a melodia são de corda. Mamãe arranca a chave e entramos. O cheirinho de casa infiltra-se em meu pulmão enquanto tento um meio de fazer a cadeira de rodas entrar na casa. Talvez a construção não tenha mudado nada, mas há um banco na varanda e desconheço sua existência em tempos mais remotos. Papai é deixado por mim bem ao lado do sofá desbotado, cor de café com leite. Eu paro e observo como tudo está igual, porém diferente.

— Você prestou atenção no que o médico falou? Sobre os remédios e tudo mais... Como deve cuidar dele — começa mamãe, com sua preocupação afobada que sempre costuma me irritar.

— Sim, sim — concordo, sentando-me no sofá.

— Se lembra das regras? — pergunta, olhando diretamente para os meus pés. Por um segundo achei que tinha achado o meu all star encardido feio, mas enfim consigo compreender.

— Ah, sim. Nada de entrar com tênis — levanto-me depressa e tiro o par de tênis, deixando-o perto da porta de entrada.

Na minha casa, não tem essa regra. Na minha casa, posso ficar de tênis onde eu quiser. Posso dormir o horário que eu quiser. Posso lavar os pratos quando eu quiser. Posso cozinhar quando eu quiser, se eu quiser. Não há ninguém dizendo-me o que devo fazer, então é desconfortável estar sendo vítima de uma série de avisos sobre atitudes. Eu sei de tudo isso, mas achei que seria um pouco mais independente agora.

café et cigarettesWhere stories live. Discover now