você comendo é uma boa visão

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Reconheço o prato de cara, ainda que nunca tenha provado. Já o servi algumas vezes, mas não faço a mínima ideia do gosto. Tem feijão, sei
disso. Wooyoung ainda preparou um macarrão para mim e eu não consigo
acreditar que ele fez tudo isso tão rápido e para alguém que com certeza deve odiar.

— Ei, coma tudo — me avisa ao pousar o prato na mesa. — Se chama Cassoulet.

Sua pronúncia é perfeita, ele pronuncia melhor que eu. Ah, mas é claro  que ele vai pronunciar melhor que eu. Ele é o chef principal daqui e
ninguém ousa contradizê-lo, pois sempre sabemos que tem razão. Ele é tão novo, mas tem uma vida cem vezes mais promissora que a minha. É
bonito, talentoso e deve falar mil e um idiomas. Até sua franjinha presa é incrível, meu Deus.

— Ah, então é assim que se pronuncia? — confesso internamente que estou um pouco desconfortável com tudo isso entre nós.

Ele não vai comer nada, aparentemente. Apenas trouxe o meu prato e uma taça de vinho para mim. Está sentado bem à minha frente, com os braços cruzados sobre a mesa e um olhar curioso. Essa é a hora que eu como?

— Vá em frente, não vou roubar sequer um pedacinho — ele tenta me deixar confortável, mas não está ajudando muito.

Só essa banda do restaurante está sendo iluminada e eu não quero pensar demais sobre como isso está parecendo. Estou faminto, então não
fico fazendo rodeios antes de experimentar a especiaria. Está quente e saboroso, o feijão praticamente se desmantela na minha língua de uma maneira viciante. Tem carne de porco também ou similaridades. Está quente, me dando calor. Tiro a jaqueta e acompanho uma arqueada de cenho do galã à minha frente. Ele está mesmo me observando atentamente.

— Está muito, muito bom! — exclamo animado, ansioso para comer mais e desfrutar desse sabor incrivelmente maravilhoso. A dor de cabeça vai deixando de ser intensa e eu me pergunto por que sempre deixo isso acontecer.

— Ótimo — ele sorri para mim, então estala os dedos e checa o horário no relógio de pulso.

Droga, ele deve ter hora de voltar para casa. Pode ter compromissos, quem dirás um encontro. Acho que estou atrapalhando seus planos, vou adiantar o máximo que puder para não prendê-lo. Não quero dar tanto trabalho assim ao Jung. Ele até que é legal.

— Não, não tenha pressa — me pede ao notar minha terceira garfada seguida em menos de dez segundos — Relaxa, San. Você precisa comer.

Concordo com a cabeça. Ele deve estar com pena de mim. Que maravilhoso eu andar pela vida parecendo um coitadinho por ser um idiota despreocupado. Ele nem vai falar comigo depois de hoje, porque eu sei que vai pensar que estou me aproveitando da sua bondade. É melhor eu parar de pensar sobre isso.

— Já volto — me avisa ao me ver terminar, levantando-se e voltando à
cozinha. Eu fico quietinho bebendo o vinho, recordando-me de quando foi a última vez que tive uma refeição decente e uma bebida decente e uma companhia insistente para me observar.

Minha vida mudou drasticamente depois que resolvi sair de casa e da minha cidade natal. Nem tudo acontece como planejamos. E eu já disse quão ruim sou com planejamentos. Depois de centenas deles dando errado, decidi viver despreocupado e aqui estou. Se não fosse por Seonghwa, acho que eu não teria nenhum amigo e nenhum lugar para ir caso eu seja despejado.

— Especialmente para você — Wooyoung me aparece com uma sobremesa. Ele está sorridente e continua: — Profiterole.

Sua pronúncia me acalma, é como um carinho na cabeça. Eu sorrio de volta e só como quando ele se senta e me observa outra vez. Admito que é estranho isso. Tomo cuidado ao mastigar, não deixar vestígios nos lábios, comer com a boca fechada o tempo todo. Ninguém nunca me assistiu dessa maneira e eu não quero parecer nojento ou mal-educado.

— O que você está fazendo? — meu tom de brincadeira é proposital para quebrar a tensão.

— Você comendo é uma boa visão — seu cotovelo está sobre a mesa e ele apóia a cabeça numa das mãos. — Todinho.

Ok, eu não entendi um pouco direito. O que ele quer dizer, especificadamente? Eu quero entender, mas meu rosto fica rubro antes mesmo de eu concluir. Ele não está que nem o resto do mundo: no celular à mesa, trocando mensagens como um maníaco. Ele está olhando bem no fundo dos meus olhos e contato visual direto me assusta. Eu quero correr.

— Isso é incrivelmente bom — mudo de assunto. Abençoado seja Choi San aka euzinho. Funciona bem, por enquanto.

— Eu não sabia que iria gostar tanto a ponto de ficar vermelho — filho de uma deusa do amor... essa peste está brincando comigo?

— É, né... Hehe — onde há um buraco para eu me enfiar? Querido País das Maravilhas, mande-me um portal agora. Obrigado.

Esse desgraçado está me deixando envergonhado, vou bem me vingar em algum momento. Credo, somos praticamente desconhecidos e eu já estou cheio. Seria melhor eu ir embora antes de mais alguma merda acontecer.

— Meu sotaque te irrita? — indaga Wooyoung. Mal sabe ele que esse sotaque é coisa mais linda que já escutei.

— Que nada — faço uma careta e bebo mais um tantinho do vinho.

— Ah... Porque você sempre foge de conversa e tals... — Wooyoung coça a pontinha do olho e me fita com cuidado.

— Eu não fujo de conversas — me defendo. — Só não sou muito de conversar.

— Nem eu — ele conserta a postura. — Mas estou disposto. Aliás, você já está se sentindo melhor?

— Sim — afirmo com a cabeça. Quando ele vai me liberar? — Hã... Está gelado, né?

— Não tanto, para mim. Eu estava na cozinha.

Droga, esqueci de agradecer.

— Ei, obrigado por ter me salvado, me ajudado e me alimentado. Sinto que minha dívida é eterna.

— Como eu sei que você não vai comer, de qualquer jeito — ele se inclina para frente, como se tivesse segredando-me. — Posso te proporcionar uma refeição por dia, no mesmo horário.

Me engasgo instantaneamente com o vinho. Que é isso, afinal? Um novo joguinho de sedução que eu acabei por não acompanhar nesses dramas novos aí? Cruzes, estou até com medo. Agora ele com certeza se parece com o mesmo cara de calça capri e sandálias nos pés que conheci pela primeira vez. Eu ainda juro que ele não parecia estar com raiva naquele dia, mas sim praticamente me engolindo. Eu tenho medo dessas coisas e é uma pena meu celular ter quebrado, caso contrário eu já teria ligado pela polícia acusando-o de sequestro e assédio.

— Não, obrigado — minha voz treme. Isso não é mero drama. S.O.S!!!

— Por que não? Sabe, eu fui seu herói hoje... — ele ergue o sobrolho e logo deixa-o cair.

Ele não é mais tão legal quanto antes. Voltou a ser patético.

— Obrigado pela refeição, Wooyoung. Posso fazer horas extras para custear — me levanto e pego minha jaqueta. — Só não precisa esfregar isso na minha cara e se vangloriar. Não quero mais que cozinhe para mim. Eu posso me virar sozinho.

Nem creio que ele vai usar esse argumento para conseguir o que quer de mim. Eu não funciono assim. Se soubesse que ele iria querer mandar em mim depois de me ajudar, como forma de pagamento, eu teria ido embora trôpego para desmaiar em qualquer canto longe daqui. Aish... As pessoas só decepcionam. Criei expectativas e tomei no...

— Você entendeu errado — tenta se explicar, mas é tarde, porque estou com a cara fechada e estou quase na porta. — Você tem expressões claras quando come, San, e eu quero observar isso e saber que tipo de sensação as pessoas têm quando comem determinados pratos.

— Tem inúmeros críticos aí fora bem melhores que eu — enfio a jaqueta nos braços e abro a porta.

— Não é crítica, é observação — ele ainda tenta me explicar mais. Eu estou cansado demais para escutá-lo.

— Entendi — saio do restaurante. — Pode descontar do meu salário — e então fecho a porta.

Por que fico decepcionado por ele ter feito algo para ganhar em troca? É assim que a porra do mundo capitalista funciona e nem sei por que me surpreendo. Merda. Sei que não devia fumar, mesmo assim tiro o isqueiro do bolso...

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