- Não sei como parar as sombras. - murmuro. - E não sei o que fazer sem elas.

Ela põe a mão em meu ombro, acolhedora. - Vai aprender. - ela olha nos meus olhos e eu sei que vou. - Maori não nasceu mau, Ray. E nem Alyah, nem Hill. Eles fizeram péssimas escolhas e foram por um caminho sem volta. Não quero que o mesmo aconteça com você.

Ela então se afastou e ficou em posição de combate me chamando para uma luta. Dei um sorriso de canto e parti com o meu bastão.

Celestium se defende sem esforços, ela apara os golpes com as mãos, joelhos e pés.

Ela saltou no ar, seu golpe desceu com tanta força, que sua perna direita quebrou o chão do pátio no momento em que desviei. Girei o bastão em minhas mãos e o lancei para cima, com um chute, lançando-o na direção dela como uma flecha.

Com uma rapidez sobre-humana, Celestium segurou-o, passou o bastão pelas costas e voltou-se para mim com ele em riste.

Sorrio. Ela apenas levanta a sobrancelha.

Minhas pernas ardem de dor a cada investida dela, aparo os golpes do bastão com precisão, sem mover os braços. Ela lança o bastão nas minhas pernas e eu me livro da rasteira com um salto. O próximo golpe me faz arfar, ela leva o bastão até minha cabeça e eu quase sou atingida, dobro minhas costas para trás, fugindo do golpe.

Em seguida, acerto-a nas costelas, e com o impulso vou para trás dela, e Celestium acerta o bastão nas minhas costas, um gemido de dor escapa da minha garganta. Salto para trás, longe do seu alcance. E ela corre com o bastão em mãos, pronta para acabar com essa luta.

Ela o levanta e no momento em que ele desce para quase partir-me ao meio, respiro fundo e sinto uma leve pulsação nas solas dos meus pés e nas palmas das minhas mãos. Ergo a mão aberta e assim que o bastão a toca, ele para no ar, estagnado.

Me viro para mostrar a ela que ganhei e caio para trás com a força de um soco no nariz.

- Qual o seu problema? - reclamo com a dor me fazendo perder os sentidos. - Eu já havia ganhado!

- Jamais se concentre na arma e esqueça de quem a empunha. - ela diz. Limpo o sangue que começa a escorrer pela minha narina. - Mesmo a maior e mais afiada espada, sem ninguém a usá-la não passa de um pedaço frio de metal.

- Certamente uma lição importante. - a voz de Atswa atrás de nós me pega de surpresa. - Ray, venha. Preciso te mostrar uma coisa.

Cumprimento Celestium com a cabeça e sigo a sacerdotisa. Ela me entrega uma fruta como café da manhã para irmos comendo no caminho. É estranho andar em silêncio por tanto tempo. Mas isso me dá tempo e atenção para reparar na cidade. Arnlev é como eu achei que seria, linda, iluminada, alta. Há apenas algo que não acertei quanto a ela: a calmaria. Posso ouvir o vento uivando ao bater nas janelas, não há pessoas correndo pelas ruas, atrasadas para o trabalho, nem crianças roubando ou terres em alta velocidade. Aqui nada é cinza e sem vida. Aqui parece estar tão longe da realidade de onde nasci e cresci.

As ruas tem uma leveza que nunca vi em nenhum lugar. As pessoas nos cumprimentam ao passarmos. O ar tem cheiro de framboesa e isso tudo parece bom demais para ser verdade.

- Não é bonito? - Atswa pergunta sem me olhar.

- Sim. É sim.

- Nem sempre foi assim. - ela me lança um olhar cheio de significado. - Há muitas gerações, a guerra devastava a Mondian e a Arnlev. Causando cenários assim:

Ela apontou para uma ruína, em contraste com as outros prédios. Talvez não o tivessem restaurado para que ficasse como lembrança, do que a guerra pode fazer, do que as pessoas podem ser. Os arcos do que pode já ter sido uma varanda de alguma construção, jazem no chão, intocados como se tivessem sido bombardeados ontem mesmo.

- Eu não entendo como as coisas puderam chegar a esse ponto. - sussurro. Tantas pessoas morreram. Inocentes. - Ganância, ira, soberba, como as pessoas se deixam dominar tão facilmente por esses sentimentos?

- Da mesma forma que a vingança tomou conta do seu coração. - ela diz sem me acusar. Mordo a língua.

- Eu só quero justiça, Atswa. - respondo.

- O que você pensa quando pensa em justiça? - ela balança a cabeça. - Acredito que seja num punhal no coração do rei. - ela diz com um pesar, mas não é por ele, é por mim.

- E eu estou errada? - digo com escárnio.

Ela anda pelos destroços, sem me responder por alguns momentos. Atswa desliza os dedos por uma pedra caída e fecha os olhos, como se pudesse sentir aquele lugar antes dele se tornar um cemitério, como se pudesse se lembrar daqueles que estavam aqui quando as bombas caíram e agora são apenas poeira sob nossos pés.

- Quando as bombas químicas foram lançadas, as pessoas se desesperaram. As coisas foram piores do que se podia imaginar, as mutações acontecendo em lugares públicos, com sangue, dor. No início, os Skilleds se viam como monstros. Seu toque podia causar danos terríveis, dependendo de sua habilidade. As sacerdotisas tiveram que tomar o controle da situação. As minhas antecessoras tomaram o poder, selaram um acordo de paz e pediram ajuda aos deuses para poderem reger o povo e ajudá-los como podiam. Os deuses as ensinaram a usar a calma e a sabedoria, juntamente com a força e suas habilidades. Mas até que isso acontecesse, muito sangue foi derramado.

- E por que você me diz isso? - entro nas ruínas assim como ela. - Acha que os deuses vão descer aqui e me ensinar a fazer as coisas direito? Me ensinar a derrotar Maori? Me ensinar a não destruir tudo o que minhas mãos tocam? Me ensinar a trazer Kadash de volta?

Sinto minhas pernas ficarem fracas à medida que minha voz se eleva.

- Os deuses vão fazê-lo se lembrar de mim? Fazê-lo agir por conta própria e devolver o brilho dos olhos dele? Não, sacerdotisa! A resposta é não! - grito com os olhos se enchendo de lágrimas. - Nao vão me ensinar que mesmo depois de perder tudo, eu tenho mais do que minha vingança! - sinto meu coração doer, engulo o choro. - Porque eu não tenho!

Ela vem até mim e me abraça. É estranho como ela parece retirar todas as energias ruins que me cercam. As lágrimas não descem pelo meu rosto, mas meus soluços estremecem meu corpo, nada comparado aos prantos que foram derramados neste exato lugar.

Quando olho ao redor, meu fôlego escapa. Nas pedras e nos destroços vai crescendo uma gramínea branca, como flores minúsculas. Elas vão crescendo à nossa volta.

- Estou te contando isso porque não serão os deuses a te ensinar. Serei eu.

As Crônicas de Rayrah Scarlett - Esperança Em Arnlev [RETIRADA EM 25/08/22]Where stories live. Discover now