27

69 18 0
                                    

Eu senti um puxão me acordar, olhei ao meu redor e não vi Bolinho em lugar algum. A sensação no meu peito era incômoda, como se houvesse uma linha esticada presa em mim e a alguma outra coisa.

Meu peito começou a doer e eu sentia uma ligeira falta de ar. Não aguentei, levantei, calcei minhas botas sem meias mesmo e fui até a janela. A distância era grande, mas não impossível de pular. Aquele sufocamento preenchia tanto minha mente que foi isso mesmo que fiz.

Senti meus pés arderem quando cheguei ao chão, minhas pernas vibravam. Esperei a dor diminuir para seguir em frente. Fui em direção ao puxão da linha invisível e a aflição diminuía a cada passo.

Entrei na floresta, dei uma empacada ao lembrar o que aconteceu mais cedo, mas precisava acabar com aquela dor e saber o motivo dela, apesar de desconfiar que era pela distância de Riwty. Ele já tinha falado algumas vezes que não podia se afastar de mim, será que ele também se sentia assim? Com certeza, ele não ficaria o tempo todo comigo só pelo meu bem estar.

Continuei em direção à linha invisível até não sentir nada, porém estava no meio da floresta sem ninguém ao meu redor. Tentei me concentrar naquele fio e consegui achar o caminho, parei assim que ouvi a voz de Riwty.

Tentei me colocar em um ponto que enxergasse o que estava acontecendo, mas sem ser vista. Riwty estava conversando com aquela fae prateada que já havia visto, Syara.

Sua mão percorria o pescoço de Riwty, não sei porque ela sempre parecia querer matá-lo. Seu olhar era de puro ódio, temi pela minha vida.

Hoje ela usava uma espécie de coroa, a única coisa presa em seu corpo.

-Eu falei para acabar com essa situação.

-Só se passaram alguns dias.

-Mas hoje você teve a oportunidade de deixá-la morrer.

Meu coração gelou.

-Apenas alguns comandos e aqueles homens teriam se livrado dela.

-Você anda me espionando?

-Você deveria saber que não posso deixar uma peça tão importante como você voando perdida por aí, ainda mais nesse momento.

-Você não tem esse direito, não sou um escravo.

-Mas é general da coroa.

-Não mais, você sabe que saí do cargo.

-Você foi um covarde, não poderia ter feito isso nesse momento.

-Não tive escolha.

-Você desceu ao nível deles, deveria ter vergonha.

-Então não deveria perder seu tempo espionando alguém tão baixo.

O barulho do tapa só não foi maior que a minha dor. Lágrimas surgiram dos meus olhos e eu senti uma raiva terrível daquela fae.

-Realmente, você não serve para mais nada.

Syara encostou a mão em uma árvore sagrada e desapareceu. Riwty rosnou e socou outra árvore, uma conífera comum e seu punho atravessou o tronco. A dor reverberou em minha mão, que ficou avermelhada.

-Saia logo daí.

Obedeci, pois Riwty parecia furioso. Ele estava encostado na árvore ferida com os braços cruzados.

-Satisfeita com o que ouviu?

-Não foi minha intenção.

Ele passou a mão no cabelo longo e bufou.

-Pelo visto agora tenho as próximas décadas para estar preso a você sem me preocupar em ser vigiado. Se eu puder confiar naquela cobra, literalmente. Acredita que mesmo tendo asas de libélula o animal original dela é uma cobra?

-Eu não sei o que é um animal original.

-É a forma animal de cada fae, não precisamos de nenhuma magia para estar nela. É como se apenas dobrassemos um braço. É completamente confortável.

-As outras não são assim?

-Não, elas trazem certo incômodo. Dizem que sua forma original representa sua alma, no caso dela eu concordo.

Pensei no coelho que Riwty era e não consegui considerá-lo tão frágil e delicado como um. A forma de gato parecia combinar mais.

-Você parece combinar mais com o gato obeso.

Riwty deu uma gargalhada sonora, sua risada era muito bonita, apesar de claramente debochada. 

-Não consegue me ver como um coelho fofinho?

-Não.

Nesse momento ele se transformou naquele coelho que eu vi na floresta, quando toda essa maluquice começou. Riwty pulou para o meu colo.

-Você sabe que não foi isso que eu quis dizer. Não consigo imaginar um coelho bonitinho devorando dois homens enormes._ Fiz uma careta ao pensar naquilo.

O coelho pulou do meu colo e Riwty voltou a sua forma de fae.

-Isso te incomodou?

-Sim.

-Você é ingrata.

-Você matou e comeu duas pessoas.

-Na verdade eu comecei a comê-los enquanto eles estavam vivos, só não podiam se mexer nem gritar.

-Isso é muito pior.

-Eles iam estuprar você e sua irmã, talvez até matar vocês depois.

-Mas você não precisava matá-los por isso, eram pessoas.

-Eram humanos. Eu não sou humano.

-E daí?

-Você chora por todas as galinhas que matou? Pelos porcos que comeu?

-É diferente, são animais.

-Você e eu também somos. A diferença é que você não é da mesma espécie deles e se acha superior. Mas eu também não sou da sua espécie e apesar de não ser minha opinião, você viu que alguns fae consideram humanos inferiores. Eu nunca escondi meu gosto por carne humana.

-Mas os outros animais não tem consciência.

-Como você sabe? Simples, você não sabe. Eu sei, sei porque posso virar diferentes animais. A consciência deles não é como a nossa, mas existe e eles sofrem ao morrer, tanto quanto vocês.

Eu não tinha como negar aquilo, fiquei triste ao pensar em como só me incomodou por ser alguém como eu. Será que a morte de um fae me incomodaria tanto assim? O fato de Riwty não ter apenas matado, mas devorado esses homens também tornava a coisa pior. Só que eu também comia animais, não tinha o direito de falar nada.

-Vou voltar para a estalagem.

-Eu levo você.
Riwty me pegou no colo, me senti aconchegada. Gostava muito do cheiro dele, seu cabelo caía nos meus braços e eu queria toca-lo, mas não tinha coragem.

Senti como se estivesse sendo amassada e em um piscar de olhos estava sentada na minha cama no colo de Riwty. Saí de cima dele e ele se transformou em Bolinho. Minha irmã dormia e eu não demorei muito para pegar no sono também.

AceitoWhere stories live. Discover now