02.2 | ou ❝má publicidade❞

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— Você está bem, garota? — fez a voz de meu pai, logo após o toc-toc na porta.

— Estou bem. — falei sem tirar o rosto do meu travesseiro — Só estou cansada de ser adestrada para parecer uma garotinha indefesa que não colocaria fogo em uma folha de papel, que dirá em uma escola inteira.

Ouvi o clique da porta se abrindo, e senti o colchão afundar ao meu lado.

— A Dra. Mônica é uma baita advogada. — começou ele, claramente ignorando a minha falta de vontade de falar sobre o assunto — Deve saber o que está fazendo.

— Só porque ela aparece na nossa província vestida como se estivesse pronta para sair numa revista e usa uma porção de palavras grandes, não significa que ela saiba o que está fazendo. — retruquei, mau humorada.

— Ela está te ajudando de graça. Aliás, considerando o fato de que ela tem que voar para cá toda vez que você faz uma estupidez, ela está pagando para te ajudar. Foi muito rude o que você disse a ela agora há pouco.

— Pai, por favor. — tirei o rosto do travesseiro para que ele pudesse constatar o meu rolar de olhos — Os Avelar estão pagando por tudo isso.

— Você não sabe.

— Sim, eu sei.

E sabia mesmo. Não porque alguém havia me dito, mas porque era óbvio.

Até parece que Lucas permitiria que eu usasse um defensor público no meu processo disciplinar. Contratar um advogado por conta própria estava fora de cogitação. Eu não usaria o dinheiro do meu pai para consertar a merda que eu fiz. E a lanchonete Canto do Edu não era tão lucrativa assim.

Então, do nada, brotou do chão uma advogada criminalista maravilhosa, amiga do grande empresário Edson Avelar, pai de Lucas, totalmente disposta a me ajudar sem cobrar um centavo, então, como eu poderia negar?

Acabei aceitando, afinal, eu não queria mesmo ir parar num reformatório, e uma advogada boa viria a calhar.

— O que você quer que eu faça? — finalmente, cedi. Não porque eu concordava com os métodos da Doutora Mônica, e sim porque era impossível olhar para a carinha suplicante do meu pai e não me comover. Se ele queria um comportamento diferente de mim, depois de um ano acobertando a minha fuga e fingindo que eu estava morta, era o mínimo que eu podia fazer.

— Que comece a agir como uma pessoa. — Arthur depositou a mão nas minhas costas num sinal de encorajamento — Sair de casa seria um bom começo. Leva o Marvin para dar umas voltas, não sei, você costumava adorar cachorros. Mas desde que voltou de Vitória não parece se comover muito com a presença dele.

Meu pai estava certo. Eu amava profundamente o nosso labrador, Marvin, mas desde que voltei a Viveiro, não me dignei a passar sequer uma manhã no quintal atirando coisas para ele pegar, nossa brincadeira preferida.

— Acho que peguei da mamãe a aversão a todo e qualquer ser vivo. — Me arrependi imediatamente de mencionar a minha mãe, porque o semblante de Arthur se fechou.

Já faz dez anos, pelo amor de Deus.

Mas meu pai ainda nutria algum tipo de sentimento por Letícia. Eu não sabia a natureza desses sentimentos, mas não precisava saber.

Eu sabia que era o suficiente para que ele estremesse à mera menção de sua existência.

— Você precisa ocupar todo esse tempo ocioso, Vale. — disse ele, fugindo do assunto — Não faz bem ficar tanto tempo assim sem fazer nada, e já que você se recusa a voltar para a escola...

— Porque voltar para a Fundação é totalmente uma opção agora, né, pai. — ele sacudiu a cabeça, contrariado.

— Eu só estou dizendo que você não pode ficar jogada no seu quarto assistindo a séries para o resto da vida. Não existem tantos episódios de Friends assim.

Ele me olhou de canto de olho, com aqueles olhos pequenos, e seu queixo quadrado se torceu enquanto um sorriso se formou.

Piadinhas de Arthur Corrêa no meio de uma discussão séria.

Eu sentia falta daquilo.

— Você é o melhor, pai. — me sentei na cama e passei os braços pelos seus ombros, num abraço apertado como há muito eu não dava.

Arthur Corrêa, como de costume, estava certo. Eu precisava mesmo sair um pouco de casa para espairecer, e os fotógrafos que se danassem. Em algum momento eles se acostumariam com a minha presença e teriam de aprender a me deixar em paz, mas isso nunca aconteceria se eu permanecesse dando a eles o que eles mais queriam: uma vítima das câmeras.

Então, estava na hora de eu assumir o papel que mais detestava nesse mundo, pelo meu próprio bem, e pelo bem do meu pai.

Estava na hora de bancar a boazinha.

— A advogada está certa, sabe. João pode me implicar. — meu pai dizia sem parecer preocupado enquanto passava pela porta.

— Ele não faria isso com o senhor, pai. — garanti.

— Vamos esperar que não.

E esperamos, e esperamos, e esperamos um pouco mais. Tudo era possível, e o depoimento de João mudaria a minha vida para sempre.

Quem Brinca Com FogoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora