01.2 | ou ❝um dia...❞

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"Como você está hoje?", dizia a mensagem de Lucas no meu celular.

Uma das poucas constantes da minha vida naquele momento era essa: por volta das seis da tarde, quando ele saísse de seu emprego no aquário, a mensagem de Lucas estaria lá. Não importava o que ele fizesse, ou quem conhecesse, ou os problemas que tivesse naquele intervalo de tempo que separava um dia do outro: a mensagem dele estaria na tela do meu celular, esperando para ser respondida.

O que era reconfortante, já que ele era a única pessoa com a qual eu realmente fazia questão de conversar durante o dia.

"Cansada do drama." Era a única resposta que merecia ser dada. Passei o dia inteiro no meu quarto, de pijamas, assistindo televisão. Justo naquele dia, um dos poucos em que eu acordara de bom humor, os repórteres de plantão na minha porta conseguiram levar isso de mim.

Mas eu era uma incendiária criminosa, não é mesmo? Eu não merecia estar de bom humor. A cidade toda concordava com isso.

"Olha seu e-mail. Tenho uma coisa para você."

O e-mail era praticamente o único meio de comunicação virtual que eu mantive. Como eu essencialmente não tinha amigos além de Zaca e ninguém falava comigo, era usado basicamente para receber orientações da minha advogada, Mônica, ou as cartas que Lucas escrevia para mim.

Eu imprimia todas elas e borrifava um pouco do perfume que ele esqueceu na minha casa, quando viera passar as férias de verão comigo. Por alguns instantes, eu gostava de fingir que aquelas palavras impressas haviam sido escritas de punho próprio por ele, que suas mãos tocaram aquele pedaço de papel que agora estava nas minhas mãos.

Esse negócio de distância era difícil.

Mas a alternativa (ficar sem ele) era pior.

Lucas era a única coisa que me dava um pouco de perspectiva. Era o ponto fora da espiral descendente que minha vida se tornara (eu não conseguia chamar aquilo de curva).

Eu só conseguia pensar no momento em que eu me sentiria livre novamente, e poderia fugir com ele para o lugar que quiséssemos, de preferência próximo ao que ele mais ama: o mar.

Sentei-me na frente do computador e abri a minha caixa de entrada. No e-mail que Lucas enviara estava um anexo, um vídeo que levaria aproximadamente sete anos para carregar na internet de Viveiro. Eu o baixei mesmo assim.

Quando o arquivo foi para a pasta de downloads do meu computador, pude perceber que tinha no nome a data de algum dia de outubro do ano passado. Eu sorri. Não precisava sequer abrir para saber do que se tratava, mas abri mesmo assim.

A câmera filmava primeiro, o sol. Depois, o horizonte-mar do Espírito Santo, e aos poucos se delineavam os contornos da enseada. Da nossa enseada. A minha figura de jeans e camiseta, com os pés na areia, foi a imagem seguinte, e eu me virei para Lucas e sorri. Meu cabelo castanho desgrenhado estava por todas as partes, e eu não parecia me importar.

O vídeo não tinha áudio, mas todas as palavras que saíam da minha boca, saíam entre sorrisos. E eu comecei a socar Lucas por sei lá que motivo, e a câmera tremeu e quase caiu no chão. Então, ele virou a câmera para si e falou algo, mas mesmo que o vídeo tivesse algum som, eu não ouviria o que ele estava falando.

Porque seus olhos reluziam à luz do sol, e eu desconhecia algo nesse mundo que tivesse aquele tipo de poder sobre mim.

Os olhos oceânicos de Lucas Avelar.

Em algum momento, nos sentamos na areia e a câmera foi posta de lado. A imagem cristalizou nas ondas da beira-mar, que quebravam suavemente, uma por uma. A lembrança real por detrás daquele registro estava tão viva na minha mente, que era como se estivesse acontecendo de novo, bem diante dos meus olhos. A sensação da areia entre meus dedos dos pés. O cheiro do mar e o som das marés. A voz de Lucas em algum lugar à minha esquerda: cara, eu amo fotografar, ele disse.

Nos beijamos naquele dia. E, por errado que parecesse, por errado que fosse... eu flutuei.

Eu finalmente compreendi que não existia para onde fugir quando o assunto era Valéria Corrêa e Lucas Avelar. Estávamos ligados para sempre, por uma espécie de elo que se iniciara bem antes que nos conhecêssemos.

"Já que você não tem saído muito de casa." Foi a mensagem seguinte. Eu senti um aperto no meio do peito, e tive que empurrar as lágrimas de volta por onde pretendiam sair. Só Lucas para me enviar um vídeo como aquele; um vídeo de um dia no qual eu estava livre e com ele, com a mensagem implícita de que esse dia retornaria a nós.

"Lucas, eu estou morrendo de saudades." Foi o que eu consegui digitar.

"Nem preciso responder, né?"

Ele não precisava.

Um dia, todo aquele Deus-nos-acuda ia acabar. Qualquer que fosse a minha sentença, eu cumpriria a pena que me coubesse, e um dia eu iria sair. E quando isso acontecesse, Lucas estaria me esperando, e daríamos o fora de Viveiro, para onde eu nunca mais voltaria na vida; nunca mais veria nenhuma daquelas pessoas que se ocuparam em me julgar como criminosa, ou aqueles que se diziam meus amigos e agora apontavam para mim quando eu parava na calçada de casa.

Um dia, Lucas viria me buscar. A caminhonete azul, a carinhosa Britney, estaria parada no portão da frente, e ele sairia de dento dela, maravilhoso como sempre, de camiseta branca e óculos de armação retrô, que de nada serviriam a não ser para esconder meu par de olhos preferidos. E ele sorriria para mim, aquele sorriso com aquela covinha irresistível, porque eu estaria de malas prontas.

E eu entraria naquela caminhonete, e ele dirigiria para o infinito.

Um dia, um dia... passaríamos o resto dos nossos dias fazendo exatamente o que fomos feitos para fazer: ficar juntos.

Quem Brinca Com FogoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora