prólogo | ou ❝lá vamos nós (de novo)❞

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A despeito da insistência de, bem, todos, eu me recusava a sair de casa.

E eu já estava bem cansada de ser chamada de covarde, que parecia ser a nova palavra favorita de todas as pessoas com quem eu convivia para me descrever.

Não que fossem muitas, porque eu não falava com ninguém que não acreditasse na minha inocência, o que resultava no seguinte rol de indivíduos na minha rotina:

1. Alan Jordan, meu ex-professor da Leonardo da Vinci, que tinha testemunhado a abordagem dos investigadores quando meu esconderijo fora descoberto;

2. Meu pai e (aos olhos do público) meu cúmplice, Arthur Corrêa, que sabia de toda a minha história desde o começo e acobertara minha fuga, assegurando que ninguém mais soubesse da farsa para que todos pudessem esboçar luto sem levantar suspeitas;

3. Meu tio e chapeiro, Eduardo Corrêa, que expulsava de sua lanchonete qualquer pessoa que me insultasse, e eram muitas, embora ele mesmo não tivesse engolido essa história de fuga.

E só.

Minha cidade natal inteira, incluindo pessoas que previamente me tinham em certa estima, já estava ciente do retorno da delinquente juvenil Valéria Corrêa, que, após incendiar sua escola de colegial, a Fundação Haroldo Santini com vários alunos e funcionários dentro, fugira para a longínqua ilha de Vitória, no Espírito Santo, onde vivia uma vida despreocupada enquanto sua cidade se contorcia para se recuperar dos prejuízos sociais e financeiros de seus atos inconsequentes e egoísticos.

Era isso que a imprensa de Viveiro reproduzia incessantemente.

Não que eu pudesse culpá-los. Não é como se eu tivesse me esforçado para dar a minha versão da história ou me defender. Era só que, entre passar os meus últimos dias de paz aproveitando as férias de Lucas em Viveiro, bebendo mojitos não-alcóolicos e tomando sol nas espreguiçadeiras que meu pai colocara no terraço – porque era o único lugar em que a imprensa não conseguia me fotografar –, versus ficar dando declarações e depoimentos e entrevistas para pessoas que já tinham a opinião formada sobre mim, eu preferia a opção que envolvia Lucas Avelar.

Os jornalecos de Viveiro não aceitavam bem o fato de que eu não queria me pronunciar. Alguns dos jornalistas estavam acampados no meu quintal, dia e noite, noite e dia, com aquelas câmeras enormes prontas para me fotografar no segundo em que eu colocasse meu nariz para fora de casa.

Além disso, alguns cidadãos se comportavam de maneira assustadoramente agressiva à mera menção do meu nome, inclusive, pichando as paredes da minha casa e vandalizando o carro do meu pai, que já tinha ido parar na oficina duas vezes só naquele verão.

Os esforços de Lucas e da equipe de segurança das Empresas Avelar para me proteger traziam resultados mínimos. As pessoas simplesmente não pareciam ser capazes de me deixar em paz.

Queria ver se você não seria covarde, se estivesse no meu lugar.

Não me entenda mal. Eu sei bem que tenho uma tendência a ser uma frangote na hora de enfrentar as consequências dos meus atos estúpidos.

Qual é, eu mudei de cidade e fiz uma população inteira acreditar que eu estava desaparecida, a ser presumida como morta, só para não encarar o que eu tinha feito. Eu tinha redefinido o conceito de "covarde" no dicionário.

É só que eu não sabia se seria capaz de passar por tudo aquilo de novo. Aliás, eu mal sabia que era capaz de ter passado da primeira vez, se não fosse a existência de Lucas.

Quando me mudei para Vitória no último ano, sem entrar em mérito do porquê eu faria tamanha idiotice, eu não estava particularmente empolgada para dar início a uma vida nova. Foi só quando eu desci do carro no estacionamento da Leonardo da Vinci e me deparei com meu par de olhos favoritos em todo o mundo, que pude acreditar que aquela experiência não seria um completo desperdício.

Quem Brinca Com FogoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora