Capítulo 25 ou "Em tempo"

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Desde que eu me mudara para Viveiro, eu nunca estivera tão próxima dos acontecimentos que antecederam o incêndio. Mais do que uma fuga das minhas próprias responsabilidades, a minha ida para Vitória sem intenção de voltar era uma forma de colocar os horrores do meu passado em um lugar da minha memória que só eu estivesse apta a acessar, e não acessaria pelo resto da minha vida no que dependesse de mim. Agora, sem que eu tivesse condições de fugir – nem da cidade, nem de mim mesma – a morte de Karina voltava a me assombrar. Talvez mais e em maiores proporções do que as mortes que eu provavelmente causei por inutilizar os fios do alarme de incêndio.

É claro que eu sabia que uma garota morrera – essa era a razão pela qual todo o incêndio de desencadeara: porque eu sabia que uma garota havia sido morta. Eu sabia como, quando e por quem uma vida tão jovem havia se encerrado. O porquê eu já desistira de tentar encontrar. Estava além dos talentos filosóficos da minha mente de dezessete anos.

A única coisa que eu não sabia, e isso era parte do porquê eu me recusava a cooperar com as investigações até então, era seu nome.

Não sei, me diz você. Seria convincente o suficiente para a polícia eu dizer que uma garota morrera nas mãos da mesma pessoa que era responsável pelo crime que estava sendo atribuído a mim? Ninguém acreditaria. Pensariam que eu estava só tentando livrar a minha própria cara. Eu ainda teria de cumprir a minha pena e, dessa vez, estaria mais à mercê da ira da pessoa que tinha tanto poder de me machucar.

A coisa mais triste é que, quando vi seu retrato no ateliê de David, ela não parecia tão jovem quanto era. Karina não devia ter mais de quatorze anos, se não era aluna da Fundação ainda.

Senti lágrimas quentes e pesadas se formando, prontas para cair entre soluços de desespero. Eu não queria lembrar. Eu não queria lidar com o que eu sabia. Já tinha me conformado com a certeza de que eu cumpriria meu serviço comunitário até que fosse liberada pela Justiça, e daria o fora de Viveiro deixando o incêndio e seu responsável para trás, sem possibilidade nenhuma de me afetar.

Meu futuro agora, no entanto, era incerto. Porque eu não era a única pessoa que sabia da verdade sobre a morte de Karina Velten. David também sabia. E Alan, tão certo da minha inocência desde o primeiro momento, provavelmente também.

Eu já aprendera o suficiente da vida para saber que segredos deixam de ser segredos quando mais de uma pessoa sabe a verdade. E se a verdade viesse á tona...

Meu pai e sua nova namorada não podiam me ver chorando sem me forçar a dizer o que se passava. E, dado o meu estado de desespero, eu não sabia se seria capaz de segurar todos os pensamentos dentro da minha cabeça. E ninguém poderia saber. Era perigoso para as pessoas que eu amava. Por isso, subi as escadas que levavam ao meu quarto, dois degraus de cada vez. Joguei a mochila na cama e corri para a varanda, onde debrucei-me sobre o parapeito e deixei as lágrimas jorrarem. Aquilo não podia estar acontecendo.

- O que houve? – a voz suave de Nicholas sucedeu ao ruído da porta que dava de seu quarto para a varanda se abrindo – Valéria, o que foi?

- Eu acabei de me dar conta... – solucei, ainda incapaz de formular uma frase coerente, e igualmente incapaz de impedir as palavras de saírem. Eu não queria que Nicholas soubesse. Mas as palavras escorregavam da minha garganta.

Eu não tinha controle.

- Do que? – ele questionou cheio de preocupação.

- A garota que morreu.

- Qual delas? – ele perguntou sem nenhuma maldade, mas aquela ideia ainda fazia com que um nó se formasse na minha garganta. Pensar nas pessoas que tinham morrido por minha causa, ainda que indiretamente, era uma tortura sob medida para mim. Eu lhe lancei um olhar significativo, e ele, usando seus poderes mágicos de desvendar a minha mente, entendeu de imediato que eu estava falando sobre o homicídio. Depois de um aceno de cabeça, ele bufou e murmurou: – Era uma garota, então.

Quem Brinca Com FogoWhere stories live. Discover now