01.1 | ou ❝um dia...❞

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— Então, como anda essa cidade esquecida por Deus? — soou a voz de Zaca, do outro lado da linha telefônica. Meu pai já estava ficando furioso comigo por não usar a internet ou outro meio de comunicação mais moderna e gratuita, mas me entenda: é impossível depender da conexão precária da internet interiorana de Viveiro para comunicação prolongada.

Ainda, no último ano eu estive afastada de toda sorte de vida online, já que eu meio que estava me passando por morta. Isso fez com que eu criasse uma espécie de indiferença à internet e eu estava encontrando dificuldades em me reintegrar a esse meio novamente. Um ano na internet equivale a uns dez anos na vida real. Um ano fora da internet era como viver cinquenta anos em uma caverna, sem a menor noção de onde a humanidade tinha ido parar.

Para Zaca e eu, era só telefone mesmo. Arthur Corrêa que lidasse com isso.

— O de sempre. — respondi com indiferença enquanto escovava os cabelos – Não que eu saiba. Não tenho saído de casa.

— Os repórteres ainda estão aí? — fez ele do outro lado da linha, quase tão cansado daquela palhaçada quanto eu.

— Um ou outro. — dei uma espiada pela cortina da porta da varanda, e não via muitos carros na frente da minha casa. Essa realidade que mudaria assim que eu resolvesse sair para respirar ar puro. — Acho que eles finalmente entenderam que eu não vou dar uma de Lindsay Lohan e bater com um guarda-chuva em ninguém.

— Foi a Britney Spears que bateu nos caras com o guarda-chuva. — corrigiu Zaca, cujos conhecimentos infinitos aparentemente também incluíam fofocas e cultura pop.

— Eles mereceram. — conjecturei, me solidarizando ao duelo da Britney com os tabloides — Mas se eu continuar enfurnada, eles não terão manchetes que não "Valéria Corrêa não vê a luz do sol há sei lá quantos dias". O que não vale a pena para o jornalismo de merda que eles têm praticado.

— Você devia sair mais. — aconselhou ele, claramente sem saber do que estava falando. Era horrível sair de casa com pessoas enfiando microfones e câmeras na sua cara o tempo todo, tentando arrancar alguma declaração.

— Estou treinando para quando eu for para o xadrez. — falei, amargurada, instintivamente jogando a camisa xadrez que eu pretendia vestir naquele dia no cesto de roupas sujas. O meu visual do dia – de mais um dia, na verdade – consistiria em pijamas. De novo.

— Val, você é menor de idade. Ninguém vai te por no xadrez.

— Podem me pôr no reformatório. Dá na mesma. — e dava mesmo. O "reformatório" no Estado de São Paulo era uma espécie de manicômio no qual eles enfiavam os delinquentes juvenis que não tinham idade o suficiente para ir para uma prisão de verdade. Basicamente era um lugar horrível onde eles faziam os jovens infratores estudarem e trabalharem para "se reintegrarem adequadamente à sociedade", só que com regras tão rígidas quanto as das prisões de verdade: toque de recolher, restrição de visitas, e, claro, os castigos.

Pelo menos no reformatório todos teriam medo de mim. Se eu fosse condenada pelo incêndio, também seria condenada pelo assassinato das cinquenta pessoas que morreram nele.

E ninguém vai querer se meter com uma assassina desse calibre no reformatório. Eu podia até virar uma líder de gangue, se eu quisesse. Uma mafiosa.

Esse pensamento me provocou uma risadinha. Valéria Corrêa, uma assassina.

Eu não conseguia nem escovar meus próprios cabelos sem causar algum tipo de inconveniente, vide a escova que se prendera na parte de trás da minha cabeça enquanto eu conversava com Zaca, causando um emaranhado tão complexo que eu desistira de soltar e agora andava com um pedaço de plástico enfiado naquele fuá para cima e para baixo, tagarelando ao telefone.

Quem Brinca Com FogoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora