04.2 | ou ❝tudo que vai, volta❞

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Para a minha surpresa, assim que cheguei em casa dei de cara com a minha advogada, Doutora Mônica, sentada à mesa com meu pai; eu não estava esperando que ela aparecesse tão cedo, porque não tínhamos diligências para cumprir nas próximas semanas. Não enquanto não levassem a mérito o depoimento do João.

Geralmente, visitas inesperadas da Dra. Mônica são presságios de piores dias que virão. Eu só não me apavorei porque Arthur estava com aquela expressão no rosto, que costumava a aparecer quando o Palmeiras vencia alguma partida de futebol. Tentei não criar expectativas, mas o olhar no rosto do meu pai dizia tudo.

— O que foi? — perguntei, ansiosa, atirando a minha bolsa no sofá e me apressando em direção aos dois — O que aconteceu?

— O juiz concedeu nosso pedido cautelar, Valéria. — disse minha advogada — Você pode voltar para a escola agora.

O sorriso enfraqueceu no meu rosto. Como isso era uma boa notícia? E o que havia de errado com as pessoas? Não é como se eu quisesse isso.

Talvez para a Mônica fosse uma grande conquista, afinal, ela achava que estava conduzindo um caso perdido. Mas e eu?

— Voltar para a escola? Vocês enlouqueceram? — levei os olhos entre os dois, buscando algum indício de piada de mau gosto — Eu não vou fazer isso.

— Eu sabia que você diria isso. — falou uma voz às minhas costas, e o Professor Alan Jordan pulou para fora do lavabo que ficava logo na entrada da minha casa.

Eu apertei os olhos. É claro que Alan estava envolvido. Era o único nexo razoável entre a psicose coletiva de João, Dolores, meu pai e minha advogada de me fazer voltar a estudar.

—Será que alguém é capaz de explicar como isso foi acontecer? — exigi, cerrando os punhos.

— Começou com o depoimento do João Jordan. — explicou Dra. Mônica enquanto Alan fazia menção de se sentar à mesa — Ele alegou que acredita na sua inocência, e o depoimento dele é o mais valioso até agora, porque, ao contrário de Nicholas, ele chegou a vê-la no dia do incêndio, e depois disso em Vitória. Alan depôs logo em seguida, dizendo que você conduzia sua rotina escolar de maneira saudável, e que acredita que seria proveitoso um retorno às atividades normais. O juiz concordou e sancionou a revogação da cautelar que te impedia de voltar para a Fundação, e agora você está livre para continuar o ano escolar.

Eu era muito grata a Alan Jordan por falar em minha defesa. A razão pela qual o professor parecia acreditar na minha inocência era desconhecida por mim e por todos, mas ele permanecia firme ao meu lado.

Era quase como se ele soubesse de algo... mas isso era impossível. Só eu sabia. Não só sobre o culpado, mas sobre o motivo pelo qual alguém incendiaria a Fundação para começo de conversa.

— Acredito que este seja o seu último ano do Ensino Médio, correto? — fez a advogada, indiferente às minhas divagações.

Eu fiz que sim com a cabeça, e revirei os olhos para a conversa que tivemos umas cinquenta vezes. Eu não queria prestar vestibular. A perspectiva de ficar enfiada em um reformatório até a maioridade não era exatamente estimulante para a escolha de cursos ou algo assim. Meu único plano para o futuro era voltar para Vitória e inventar alguma coisa para fazer por lá, com Lucas.

E nem isso parecia tangível, já que o imbecil do Avelar não parecia ser capaz de atender o telefone.

— Eu não vou voltar. — atestei, e emendei ao perceber três pares de olhos se revirando na minha direção — De jeito nenhum, e vocês três parem de me olhar com essa cara. Eu vou ser linchada se passar por aquela porta! Todo mundo acha que eu queimei o colégio deles, e vocês querem me mandar para o tanque dos tubarões?

— Valéria, independente de você ser inocentada no criminal, você ainda vai ter que pagar pelos prejuízos que causou à Fundação. — contrapôs a Dra. Mônica — A metade da estrutura se perdeu, a escola passou meses fechada para a reconstrução, muitos recursos foram gastos. Até hoje o equilíbrio financeiro da escola não voltou ao normal.

— Nós não temos essa grana. — já me defendi, olhando para o meu pai.

— Eu sei. — ela devolveu, depositando a mão direita sobre o ombro de Arthur, que não esboçava qualquer reação — Por isso, Alan propôs que você ajudasse a Fundação a se reestruturar.

— Há. — soltei uma exclamação em escárnio — E como é que eu faria isso?

— Trabalhando na Fundação, em vez de na lanchonete. — Alan respondeu — Você podia ser fiscal do laboratório, pintar umas paredes ou algo assim. Tenho certeza de que conseguiremos arrumar alguma coisa para você fazer, e o juiz determinará por quanto tempo. Fora que isso vai fazer milagres pela sua reputação.

— Eu não preciso de um arco de redenção, Alan. Eu não comecei o incêndio.

Aquele silêncio incômodo pairou. Todos naquela casa tinham plena convicção da minha inocência, de outra forma não estariam ali. Até mesmo a Mônica, em algum momento, acreditara em mim. Não era esse o motivo pelo qual todos se emudeceram, mas sim, a verdade inconveniente que gritava tão alto, mas tão alto, que fazia calar qualquer outro som.

Não era todo mundo que sabia da minha inocência.

Aliás, nem todo mundo que sabia, acreditava nela.

— Eu posso te ajudar a se ajustar. — prometeu Alan — Ninguém vai te fazer mal, eu posso garantir isso. Sou professor, tenho autoridade para encrencar qualquer um que te incomode. Não deixe de fazer algo que vai ser bom para você por medo do que os outros vão pensar.

Foi nesse ponto que eu entendi por que teria de voltar. Além de ser o melhor para mim, de me ajudar na investigação e me fazer parecer um bolo de chocolate com cobertura na frente do juiz, era o melhor para o meu pai também.

Essa grana não ia se arrecadar sozinha, e eu o conhecia o suficiente para saber que ele sacrificaria tudo que tínhamos para me livrar da dívida.

Bom, se era mesmo inevitável, que eu começasse logo a fazer o que devia ser feito.

— Obrigada, Alan. — eu falei, e lancei em sua direção um olhar firme, que deveria ser interpretado como gratidão. Eu era tão, tão grata a ele.

— Isso quer dizer que você vai voltar a estudar? — falou meu pai, e a expressão de vitória do Palmeiras se espalhava por seu rosto mais uma vez.

— Aparentemente, eu não tenho escolha.

Minha advogada sorriu, orgulhosa, já que essa era a decisão difícil a se tomar. Alan aplaudiu umas quatro vezes. Meu pai se levantou para me abraçar. Eu sabia que ele não queria interferir na minha escolha, mas que secretamente esperava que eu aceitasse a proposta do juiz.

Era só mais um motivo para que eu achasse que estava fazendo a coisa certa.

— Amanhã mesmo vou regularizar sua matrícula e conversar com a administração para escolher o trabalho voluntário que você fará. — falava Alan, todo animado — Vou te matricular no curso de fotografia, também.

As últimas palavras de Alan mais pareciam pedradas na minha testa.

— Vai ser bom para você, Valéria. Voltar a fazer algo que você ama, ocupar seu tempo e sua cabeça com algum projeto, em vez de só ficar em casa se martirizando com esse processo. — insistiu ele, dada a minha evidente melancolia — Você adorava fotografar quando estava em Vitória.

É claro que eu amava fotografar quando estava em Vitória. Era difícil o contrário, quando se tinha Lucas por perto sendo totalmente cativante com aquela câmera, fazendo joaninhas no chão parecerem uma dádiva absoluta, que deveria ser imortalizada em imagem. Ele era apaixonado por aquilo, e era aquele tipo de paixão que irradia por todos os poros e domina todos aqueles que se atrevem a se aproximar.

— Fotografia é coisa do Lucas. — eu toquei instintivamente o pingente em formato de câmera fotográfica que Lucas me dera no último ano, antes de eu me mudar de volta, para que não me esquecesse dele.

Como se fosse possível.

— É coisa sua também. — argumentou Alan, tocando a maçaneta da porta de entrada da minha casa — Você só não se deu conta disso ainda.

Quem Brinca Com FogoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora