Capítulo 12 - O novo rei

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Deitada sobre seu corpo, toda a sua pele junto da minha, o senti esfriando devagar, enquanto recuperava meu fôlego. Não precisei enfiar a adaga em seu peito, pelo menos não dessa vez. Não me lembrava de tê-la usado mais de quatro vezes em todos aqueles nove anos juntos. Certamente ele estava muito aliviado por isso, mas esgotado. Sei que metade do seu esforço era para me dar prazer e a outra metade era para segurar o monstro sedento de sangue que mora dentro dele.

Eu gostava desse monstro também, de brincar com o perigo. Não sei se desejaria tanto Andy Mideline se ele não fosse um homem morto, instável, taciturno, ranzinza, teimoso e cheio de segredos que liberta demônios com sinistra naturalidade. Como saber? Deslizei a pontinha do punhal pela sua maior cicatriz, que tomava toda a parte direita de seu abdome, mas que era apenas uma entre incontáveis outras que mantinha escondidas em suas eternas camisas velhas de mangas compridas:

— Tem uma história não contada muito interessante nessa sua pele — suspirei.

— Bom, já disse que minha paixão pela morte não foi correspond-

Fomos interrompidos por sons de explosões e brilhos coloridos no céu. Quase morri de susto, pulamos como gatos acuados, mas logo pudemos notar que era um espetáculo sendo oferecido pelo Reino de Yaryar, e que era verdadeiramente deslumbrante. Malditos ostentadores de bom gosto. Andy ajeitava a camisa, voltando-a do avesso para se vestir:

— Hunf — bufou — Pólvora. — A colocou sobre a cabeça, ajeitou os braços dentro das mangas — Se fizesse ideia do quanto lutei para essa porcaria continuar proibida.

— É sério?

— De todas as lições que me trouxeram as guerras, além desse cansaço e dessas cicatrizes, a mais importante é: todas as lutas são vãs. — colocou a corrente do amuleto no pescoço, ajeitou o pingente próximo ao umbigo, me dando as costas.

— Nossa, que estimulante, obrigada.

— Por nada — vestiu as calças, sorrindo cínico.

Depois voltou a sentar ao meu lado, olhando o céu e acariciando meu corpo nu, num longo suspiro pacífico:

— Pior que essa merda é bonita demais...

Mais tarde descobrimos o motivo dos fogos: Matheus, o irmão mais novo do rei Jeremias, tinha tido seu primeiro filho homem, o herdeiro, batizado em sua Santa Água com o nome de Davi. A freirinha sortuda cumpriu arduamente seu trabalho, mas ao invés de descansar ainda tinha de aguentar muito barulho e festa aquela noite. Não que ela fosse criar o moleque. Seu trabalho era dar e parir, depois ficar rezando até os joelhos formarem calos, esperando o irmão do rei voltar ao seu quarto e tentar fazer o segundo.

Pensava no lindo bebezinho de cachinhos cor de fogo e olhos amarelos leoninos que chegava ao mundo naquela noite quente e estrelada. Ele devia ser realmente adorável. Era uma pena que eu tivesse de matá-lo.

Cinco anos mais tarde ouviríamos novas explosões coloridas pelo nascimento do segundo bebê. Levi era seu nome. Aquele que seria pai dos futuros príncipes, mas não rei. Talvez invejando eternamente o irmão mais velho, talvez alvo eterno da inveja dele, dependendo do fogo ou da ambição de cada um. Talvez, apenas mais um cadáver da minha Revolução.

Mas o destino também tem seus Golpes. Apenas dois meses após tanta comemoração, soturnos soldados saíram pelos portões do reino, tomando as trilhas das vielas do mundo exterior. Trajando preciosas armaduras negras com o emblema das asas brancas nas capas, intimidaram cada passante, cada boteco fedorento da nossa vizinhança, com a ordem para que não nos embriagássemos, fizéssemos festas ou sexo por uma semana, pois o rei estava morto.

Ora essa...

Jeremias, o maldito, não foi capaz de esperar a morte pelas minhas mãos. Fazia três anos que estava definhando, cada dia mais isolado em orações inúteis ao seu sádico Deus. Sim, aquele Deus, o que exigiu dele toda dedicação, castidade, sacrifícios e fidelidade cega. Esse mesmo Deus o fez apodrecer vivo dentro de seu lindo Palácio Sacrossanto. Fez foi pouco. Mas fez no meu lugar, e isso me deixou furiosa.

A coroação de Matheus seria ainda naquele verão e os portões seriam abertos para ilustres convidados. Que não éramos, obviamente, nós, os malditos pagãos, os sujos pecadores. Não, eu não tinha como assistir aquilo em paz.

Já estava com quase trinta anos e pouco tinha avançado nos meus planos. Observava o impacto que tinha causado na comunidade de fora da Muralha, tanto que podia ver nos olhos deles uma hostilidade indisfarçável aos soldados do rei, às suas ordens, como se dissessem "aqui vocês não mandam mais". As mulheres que uni já estavam buscando mais e mais adeptas à sua própria aldeia. Produziam suas próprias e exóticas armas – algumas talvez únicas em todo o mundo – dispostas a formarem um exército livre com o simples nome de "Amazonas". Sempre que as visitava recebia demonstrações efusivas de gratidão e fidelidade:

— Basta que dê o sinal, Rainha dos Corvos — dizia Ivonne, a General, ex-prostituta que acolhi há mais de dez anos em estado lamentável, e que agora brilhava, músculos adornados por veias saltando das regatas, cabeça raspada, olhar vivo, transbordando entusiasmo.

Elas não tinham matado ainda, faltava-lhes o aval, por isso mesmo estavam sedentas por sangue. Assim como eu. Apesar de tudo, eu também não tinha tirado nenhuma vida, só observava Andy causar sua discreta destruição ao meu redor. Isso me frustrava. O tempo estava passando, eu estava ficando velha. Tinha medo que meu ódio se tornasse apenas uma rabugice. Detestaria passar a vida ameaçando algo que nunca se cumpriria.

— Eu não vou durar para sempre como você. — dizia ao meu consorte — É tudo culpa sua, meu tempo precioso se esvaindo. Matheus não deveria ser rei. Você sim. Nós. Sabe do que as Amazonas me chamam? Rainha dos Corvos. Elas já se consideram minhas súditas.

— Então as governe. — respondeu, indiferente — Passe alguns meses no meio delas, ouvindo reclamações o dia inteiro, sendo responsabilizada por todos os problemas da aldeia, veja se gosta tanto assim da ideia de reinar.

— Hm — dei de ombros — A parte burocrática não me interessa.

— Estou tão surpreso que vou precisar pegar fôlego para me recuperar desse susto. — Andy me olhava com tanta ironia que quase saquei o punhal só de raiva.

Era difícil manter minhas ambições em dia ao lado de alguém tão desencantado. Era compreensível que ele tivesse tido experiências muito ruins no trono, mas... ora, quem estou tentando enganar? Eu não dava a mínima! Ele teve a chance dele, eu queria a minha e ele não queria entrar na minha onda de forma alguma. Já tinha feito de mim uma bruxa muito mais poderosa do que eu poderia sonhar em me tornar, era um amante maravilhoso, cuidava de mim, embora às vezes beirasse a super-proteção e me desestimulasse a continuar fazendo programas com sua ideia entediante de "vida simples", mas nunca me impôs nada. Era uma parceria prazerosa e saudável. Num geral eu não teria reclamações de um homem como ele na minha vida. Talvez fosse a crise dos trinta anos. O que era irônico, pois meu mentor tinha literalmente dez vezes a minha idade.

Eu tinha de ter paciência, porque ele certamente tinha muita comigo, mas o tempo corria e Andy não iria se dobrar, talvez jamais. Não, ele não era o homem que me daria poder.

E Lilith foi muita clara de que haveria dois homens em minha vida. Perguntava-me quando o segundo iria chegar, e como.

A Rainha dos CorvosWhere stories live. Discover now