Capítulo 2 - O reino de Yaryar

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As muralhas de Yaryar foram erguidas há menos de duzentos anos. Foi o último ato extremo para proteger o reino limpo, belo e cristão de toda impureza da vegetação e seus moradores selvagens. Minha aldeia repleta de mestiços não era a única do lado de fora. Junto a nós havia muitas tribos espalhadas na mata virgem, outros vilarejos salpicados, outras bruxas, como Lilith havia me dito e que eu almejava conhecer. Depois de nós, o mundo inteiro. O mundo inteiro era impuro e não merecedor das benesses do tal Deus único e Seu Filho Favorito, Jesus Cristo. Que também era ele mesmo e uma pomba. Sei lá. Nunca entendi direito essa religião esquisita.

Mas sabia suas regras, e a que mais nos atingia era: ou uma mulher é obediente e virginal, ou é uma vadia e vai queimar no Fogo Eterno. Porque era isso que eu ouvia dos clientes, desde que tive minha primeira lua. Eles pagavam misérias para usar nossos corpos famintos e ainda espezinhavam nosso orgulho, nos condenando às lancinantes trevas, enquanto pairavam sobre nós como santos, apenas por terem um lar cristão para onde voltar ao final de seu divertimento sujo. Patéticos.

Ressentida, eu? Não. Muito mais que ressentida: revoltada. Olhava aqueles muros como quem olha para as próprias costas desse Deus mesquinho, viradas para nós como se fôssemos baratas. Cresci junto de mulheres e crianças submissas, acreditando em sua própria impureza e vivendo de suspiros melancólicos. Nós éramos muitos e devíamos nos revoltar juntos! Mas aparentemente, eu era a única revoltada ali.

Não que eu não entendesse o fascínio que Yaryar exercia sobre nós. Preciso ser sincera e lhe dizer como eram as coisas lá dentro das muralhas: eram fantásticas. Vamos começar do começo...

O Palácio da Primavera, construído para ser o lar de Valquíria, "A Bruxa", representava o paraíso, um retiro de completa tranquilidade e deleite, um descanso para o corpo e o espírito depois dos longos anos de guerra que antecederam seu reinado. Valquíria quis que assim o fosse, e o paraíso para ela, uma pagã, era uma infinidade de jardins suspensos como a ancestral e magnífica Babilônia. Fontes, cascatas, árvores floridas, trepadeiras de todas as espécies, frutas, flores, perfumes e estátuas de Elementais e da própria Deusa por todos os lados, enquanto símbolos sagrados da Mãe Terra se espalhavam em seu interior junto à decoração que era lindamente simples.

Valquíria era o mais puro sangue de Rohrand, filha do rei Balzac de Ribault e a grande Senhora Maline de Cerridwen. Tinha cachos vermelhos cor de sangue e a pele salpicada de ferrugem. Quem herdou o Reino de Yhwin, verdadeiramente, foi seu filho Ulisses quando ainda era um menino, mas Valquíria foi coroada como regente até que ele tivesse idade para governar. Foram mais de dez anos sendo a absoluta rainha pagã, espalhando a religião sagrada por todos os cantos de seu reino. Sem muros, sem medo, com orgulho e força.

Então vieram os padres. Por descuido da rainha, se aproximaram de Ulisses sorrateiramente quando o mesmo já estava próximo à ascensão ao trono, reacendendo o culto em torno de uma religião há muito já extinta, enchendo-o de temores em relação às trevas. Valquíria garantia ao filho que estavam seguros, que não havia demônios ou vampiros desde o final da grande guerra que lhes permitiu reinar em Yhwin, mas os padres prometiam que o paganismo da rainha ainda colocaria em perigo a alma de todos.

Valquíria e sua rainha Marguerite foram perseguidas ainda em vida pelos religiosos que se multiplicavam como praga, mas ela teve pulso de defender seu lugar e sua religião até o último minuto. Mas o último minuto acabou vindo. Um ataque de vampiros, disseram os padres. Lilith nunca acreditou nessa versão, mas foi a que foi oficializada como causa mortis da magistral rainha.

Oh então era isso, os padres estavam certos: ninguém estava a salvo. Ulisses entrou em pânico. Seu luto o fez confiar cegamente em tudo que os religiosos lhe diziam, e o que diziam era que o que atraía os vampiros para Yaryar era a inimizade ancestral entre eles e os bruxos e bruxas. Se quisessem eliminar a um, deveriam eliminar aos dois. Não mais bruxas, não mais vampiros, não mais trevas, não mais perigo. Ah sim, quem havia livrado o mundo do medo antes do Apocalipse, senão a Divina Santa Igreja?

A Rainha dos CorvosWhere stories live. Discover now