Capítulo 10 - Um deles lhe dará amor

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Os anos passaram rápido, em especial os primeiros, quando tudo era novo e eu ainda tinha tanto a aprender. Andy me desafiava, e, bem, meu ego não me permite negar desafios, sendo assim, funcionávamos gloriosamente juntos. Mesmo que a maior parte de suas lembranças pessoais permanecesse trancafiada em um cofre inacessível, ainda assim construíamos uma saudável intimidade. Sentia que ele gostava sim de me encontrar, não apenas me suportava ou me instruía por culpa, como no início. Éramos amigos.

Nossas melhores conversas eram debruçadas sobre lembranças que ele divida comigo sobre nossas mestras e sobre lições dadas pelo próprio Hans Mardock, que, segundo ele, tinha sido meu mestre também.

— O que me assustou bastante na época — ele disse.

— Ué. Por quê?

— Mardock era muito fechado. Terrivelmente seletivo e bastante... — engoliu seco. Tinha se arrependido de começar a contar algo, o que acontecia com muita frequência.

— Ora, vamos — sorri — Não comece com isso. Somos adultos.

Sim, pois tinha completado meus dezoito sóis há poucos dias. Finalmente havia chegado à maioridade legal – que nem importava, visto que não tinha documentos – como sentia muitas mudanças em minha vida que não se resumiam à cor dos cabelos. Minha tenda não mais existia, agora vivia na casa de janelas. Não era visitada apenas por homens atrás de divertimento para saciar sua luxúria, mas por muitas mulheres atrás de experiências transcendentes e conhecimento mais profundo sobre a Deusa e como ela poderia transformar suas vidas. Não ousaria dizer que já era uma mestra, mas definitivamente já tinha muito a repassar e sentia prazer e satisfação em fazê-lo.

Meu templo na nascente tinha até um pequenino moinho e um lindo candelabro cravado na terra. Lá me dedicava às minhas rezas e feitiços religiosamente todas as noites. Andy tinha me infectado com essa disciplina doentia dele. Ele era tão devoto que, se amasse o Deus ao invés da Deusa, certamente seria um padre. Um padre mesmo, não do tipo que vinha me sustentar com Cartas e livros. Tanto que o máximo que tinha conseguido dele até minha maioridade eram beijos suaves e carícias interrompidas antes de se tornarem "prazerosas demais".

— Mardock era cruel, Sigrid. — ele completou, interrompendo meus devaneios.

— Tantos rodeios para me dizer isso? — zombei.

Era claro que ele não tinha me falado tudo. Que novidade.

Estávamos no alto de um dos morros, o retrato ancestral da Via Láctea pairando sobre nós era de tirar o fôlego. Fazia alguns dias que não nos encontrávamos. Andy sumia às vezes. Normalmente depois de ficar "doente". Algumas vezes achava que ele tinha morrido – de verdade, não de sua morte usual – nessas "desaparições".

Quando estava debilitado, se tornava rude e nervoso. Selvagem. Escondido sob o capuz, me mandava ir embora antes de eu sequer colocar os pés dentro sua caverna. Mas pescava de relance as olheiras profundas sob seus olhos que guardavam um brilho diferente, as faces ossudas e a pele acinzentada. As unhas afiadas. Não me assustava, apesar de reconhecer que deveria, só me enchia de uma mórbida curiosidade: afinal, quem ele mata, e como, para voltar dias depois esbanjando juventude e beleza assim? Será que ele me ensinaria esse segredo um dia?

Quantos segredos ele ainda manteria para aquela que seguia seus passos descalços na escuridão há tantos anos?

— Creio que eu já mereço saber quem eu fui, Andy — lhe disse, ajeitando a manta de lã no chão, aquela mesma que me aquecia desde minha primeira noite de liberdade — Ou melhor, quem você acha que eu fui.

A Rainha dos CorvosWhere stories live. Discover now