Capítulo 5 - Pisando na tempestade

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Era Samhain. Estava determinada a fazer meu ritual em um lugar diferente, comemorar o final daquele ano tão especial ainda mais isolada, sem o perigo de ser importunada por algum cliente pagão que quisesse, por acaso, virar o ano em minha companhia. Fugi das trilhas assim que o sol despontou, atrás de maçãs e dos cogumelos amarelos trazidos pela garoa da noite anterior. Andei um sem número de passos, encontrei apenas quatro deles, mas levava comigo uma boa adaga caso precisasse abandonar a ideia dos fungos e me utilizar dos cipós para a poção da noite.

Em meu pequenino caldeirão de ferro só iria caber uma maçã, o que não era problema, já que eu faria o ritual sozinha, ou melhor, com meu amuleto e meus corvos, como tinha feito tudo aquele ano. Segundo Lilith e as Cinco Bruxas, essa noite era o momento do véu entre o mundo dos mortos e dos vivos ficar mais tênue, a hora de poder me reencontrar com antepassados. Nessa noite eu não estaria mais sozinha. Já ensaiava em minhas preces pedir a presença delas todas: Yeda, Thabata, Sylvia, Perséfone e Marieva, assim como minha própria mestra Lilith, de quem sentia tanta saudade. Sei que provavelmente todas as suas discípulas vivas fariam o mesmo pedido, mas eu merecia mais, vai! Quem mais estava se dedicando inteiramente à bruxaria como eu? Eu estava pronta, eu não tinha medo do poder dos espíritos e dos meus antepassados, eu estava ansiosa em descobrir finalmente quem eu fui. Foi quando senti o tremor.

Como uma explosão vinda de dentro da Terra, quase um terremoto, mas de maneira mais íntima do que externa... como explicar? Era como se a Terra pensasse um terremoto, sem executá-lo de fato. Quase constatando que estivesse ficando doida, observei os meus companheiros corvos começarem eles mesmos a se mostrarem bastante inquietos. Perscrutavam ao redor, conversavam entre si. Então de novo.

Brrrmmm

Comecei a ficar preocupada, mas, mais que isso: curiosa. Escondi meu caldeirão e os cogumelos junto às raízes de uma árvore, peguei a adaga da pequena bolsa e segui rumo ao coração daquele "problema".

Ao espaçar das árvores, pude observar o céu escuro e tempestuoso sobre nós, o terreno em crescente depressão foi revelando, à distância, um quadro tão assustador quanto fascinante: uma névoa densa e acinzentada dominava toda a extensão mais baixa do vale, como um gigantesco caldeirão cercado pelas montanhas. Dentre suas nuvens, relâmpagos e raios eletrificando o solo.

— Mas que diabos... — sussurrei.

Mais de dez ratazanas do tamanho de grandes cães se revelaram na bruma, correndo desesperadas para fora, em minha direção. Encolhi-me próxima a uma árvore para não ser atropelada. Elas não eram ratazanas, entretanto, por mais que se parecessem, e por sorte não me perceberam ali. Elas tinham pescoço, olhos imensos e... humanos. Via aflição neles. Grandes olhos humanos desesperados em corpos de ratazana. Aquilo me arrepiou.

Ao fixar minha atenção nas beiradas daquela tempestade, podia observar outros pequenos seres torturados – que bem que podiam ser enormes, visto que estavam muito distantes – escapando, olhos arregalados, suplicantes, como se suas vidas dependessem disso. Senti um misto de pavor e piedade. Sem dúvidas aqueles "lobos" que devoravam as crianças da minha aldeia tinham vindo dali e andaram um bocado para saciar sua fome.

Mesmo sabendo do perigo que corria permanecendo ali, não conseguia me furtar de admirar tão espetacular fenômeno. Cada relâmpago, cada tremor, fazia subir uma excitação sem tamanho pelas minhas pernas. Aquilo era magia, magia pura, na sua essência e em toda a sua majestade. Mas o que era aquilo? Por que estava acontecendo?

"Nesta noite as portas dos planos material e espiritual estão abertas. Nesta noite tão sagrada e poderosa, toda magia é possível", recordava as palavras do livro de Perséfone, mas o mais estranho é que, por mais que as nuvens tenham escondido o sol, ainda era dia.

A Rainha dos CorvosOnde histórias criam vida. Descubra agora