||_Clarice_||

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|Não era mais que oito da manha e o bairro do Bornéu costumava acordar mais tarde, apenas a geração "fitness" e o pessoal da terceira idade saíram mais cedo. Aquele condomínio de luxo parecia morrer ainda mais no domingo.
Alfredo estava sentado quando notou Ruanna pronta para ganhar o mundo.
— Esse caso despertou paixão em minha filha... — Disse o velho folheando o jornal matinal.
— Muita! — E sorriu. — E os remédios? O senhor nem me explicou sobre eles.
— Fique tranquila, Ruanna. — Ele fechou o jornal. — O que minha filha tem pra hoje?
— Tenho um encontro. — Ele arregalou os olhos.
— Rapazes? Que interessante.
— Não, não é com rapazes. — Ela sentou e cruzou as pernas. — É com uma moça.
Alfredo respirou fundo e passou a mão direita sobre os poucos cabelos que ainda restavam.
— Não se preocupe... — Ela riu. — É a trabalho. Sua filha não é lésbica.
— Não me preocuparia.
— Nem deveria...
Ele deixou escapar um pequeno sorriso torto.
— Quem é a moça? — Perguntou o pai.
— Clarice, Clarice de França. — Ela sabia que o pai reconheceria o nome.
— De França? A menina dos laboratórios médicos?
— Isso.
— Mas ela não se enquadra nesses suspeitos desse trabalho louco que você tá envolvida? — Ele sentiu no rosto da filha que havia falado demais. — Desculpa! Desse trabalho peculiar.
— Sim. Ela estudou na mesma sala que a garota desaparecida, além disso, era sua melhor amiga.
— Que caso complexo. Se ela matou a amiga isso abala até a Secretaria de Saúde da nossa cidade. — Alfredo conhecia Clarice e suas manobras contábeis em licitações envolvendo medicamentos para o município e suas vitórias que a levaram à diretoria de um grande laboratório farmacêutico.
— Pois é... E o melhor de tudo é que ela quem me procurou.
— Como achou você? — Perguntou Alfredo.
— Não sei como ela soube que eu estava trabalhando no caso, mas você sabe melhor que eu que essas pessoas influentes são bem informadas em relação a coisas que as interessam. — Ela levantou.
— Sucesso. — Disse ele quando ela chegou perto dele e baixou a cabeça para ser beijada na testa. — Confesso que quero assistir esse documentário que minha filha está trabalhando.
— Obrigada. — Ruanna também beijou a testa do pai e saiu.

||...||

|Ruanna atravessou a cidade e se atrapalhou no trajeto até a casa de Clarice, cortou várias vezes o mesmo lugar e não encontrou o condomínio. Minutos depois as duas se encontraram em uma cafeteria que ficava na esquina de um shopping minúsculo que só trabalhava com marcas de grifes famosas. As duas já haviam se comunicado algumas vezes por telefone, e Clarice França já havia dado informações importantes para a jornalista. Procurar Sávio e Ana Moura teria sido uma de suas primeiras ideias, mas hoje as duas buscariam o endereço de Eron de Menezes.
— Oi, Ruanna. — Clarice deu um abraço apertado em Ruanna, como se a conhecesse há vários anos.
— Bom dia, Clarice. — Ruanna sentou-se e solicitou a presença da atendente do café. — Nossa visita ao nosso amigo está de pé, não é mesmo?
— Com toda certeza.
— Como conseguiu o endereço de Eron? — Perguntou a jornalista.
— Bem... Como não é nenhum segredo, tenho bastante influência na cidade e os imóveis são registrados na prefeitura. — O café das duas chegou. Clarice deu uma pausa. — E então eu tive apenas que consegui o nome completo da mãe de Eron.
— Conseguiu através da escola?
— Isso! — Clarice riu deixando o brilho dos olhos azuis mais intensos.
— Você é esperta...
— Sou influente, tenho contatos... Encontrei você, o nome da mãe de Eron e o registro de um imóvel ligado a ela. — Ruanna tentava estudar aquela moça fina, de olhar encantador que falava muito rápido. — Tudo através do bom relacionamento nos corredores dessa cidade.
— Vejo que você venceu. Parece bem. — Afirmou Ruanna Spanno sem piscar os olhos. — Casou?
— Não. Ainda não. — Clarice riu novamente e ficou nervosa com a pergunta. — Mas já me preocupei muito com isso, hoje prefiro dedicar mais tempo pensando na vida profissional e nos meus treinos na academia.
As duas riram juntas.
— Vamos? — Clarice levantou ligeiramente.
— Sim! Vamos.
A conta foi paga e Clarice preferiu deixar o carro no estacionamento e ir junto com Ruanna.

||...||

— Elen de Menezes. — Clarice vasculhava algumas informações em algumas folhas que carregava. — Viúva, foi casada com Ramon de Menezes, tem dois filhos e uma passagem trágica pela Rua dos Sonhos.
Ruanna estava dividindo a atenção entre as ruas e as informações de Clarice.
— Você parece tão apaixonada por esse caso quanto eu. — Deixou escapar a jornalista.
— Pois é... Eu vivi esse caso. Faço parte dele.
— E por que não procurou por essas informações antes? — Ruanna ouvia algumas buzinas logo atrás do Audi. — Afinal você era amiga de Íris.
— Fiz parte do inquérito, fui testemunha. Eu era jovem e não me preocupei tanto com Iris. — Ela fez uma pausa. — Senti como toda cidade, mas o que mais me importava era uma pessoa, era a dor dessa pessoa. O tempo passou Ruanna, tudo passou.
Ruanna estava atenta.
— E como me encontrou? Qual seu interesse? — Ruanna olhou para a Clarice rapidamente procurando respostas.
— Meu interesse está em tentar reviver algo, encontrar aquelas pessoas, um corpo e inocentar Eron de Menezes. — O carro parou no sinal de trânsito. Clarice levantou uma foto para Ruanna.
— Meu Deus! — Ruanna se espantou com a quantidade de hematomas no rosto de Eron de Menezes.
— Essa foi uma foto que consegui com os líderes dos direitos humanos da época. Eron apanhou por três dias e três noites dos presos que dividiram a cela com ele.
— Jesus...
— Todos os dias, às cinco da manhã, vários baldes com água congelando eram jogados em Eron. Ele saiu da cadeia por falta de provas e, em poucos dias, foi transferido para um hospital público com uma pneumonia gravíssima. Chegou a ser internado na UTI da unidade, teve complicações e uma infecção hospitalar. — Clarice mostrou uma foto de Eron no hospital. — Eron perdeu mais de vinte quilos, passou vários meses no hospital, mas sobreviveu.
— E por que você parou de acompanhar o caso?
— Eron havia sobrevivido, Iris poderia está transando em algum lugar fora do país. Ganhei uma bolsa no sudeste e fui me aprofundar no mundo dos negócios. — Clarice recolocou os papéis e as fotos em uma pasta cinza. — Toda aquela tragédia na Rua dos Sonhos não deveria bloquear os meus sonhos. Nunca me esqueci do que vivi por lá, principalmente das pessoas que conheci. Cresci sempre sabendo que aquela ruazinha tinha algo pendente comigo.
— E agora? O que te fez me procurar?
— Minha estrutura, meu coração e um amigo influente. — Clarice riu ao tentar explicar.
— Amigo influente? — Ruanna fez uma cara de surpresa e olhou para o banco do carona.
— Isso, Ruanna. — O sorriso estava na cara de Clarice.
O carro parou em outro sinal.
— Que amigo? — Ruanna quis saber.
— Sanderson, o herdeiro do canal que contratou seu projeto-piloto é meu amigo dos corredores burocráticos dessa cidade. Há alguns dias, ele comentou sobre seu interesse e sobre esse projeto fantástico. O operacional e estrutura do canal é dele, mas quem está financiando esse conjunto de documentários sou eu.
— Meu Deus... — Ruanna estava perplexa. — Mas ele não sabia qual seria o primeiro caso a ser trabalhado. Seria coincidência?
— Não sabia, mas me contou que seria sobre casos sem soluções. Crimes arquivados que chocaram nossa cidade. E eu sabia que uma hora "O caso do pervertido da Rua dos Sonhos" seria uma opção.
— Verdade... — Concordou Ruanna acelerando o carro outra vez.
— Afinal, poucos casos chocaram e mobilizaram tanto nossa cidade quanto o que estamos trabalhando. — Encerrou Clarice.
— Estamos perto da casa de Eron? — Disse Ruanna ansiosa.
— Não. — Respondeu Clarice ao olhar o trajeto no Waze.

"ONTEM TE VI NA RUA" Where stories live. Discover now