||_Solidão_||

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|Beatriz arrumou a mochila lentamente, levantou e, perdida em algum lugar distante, seguiu seu caminho deixando um barulho irritante pelo caminho, talvez por que o peso sincronizava com o arrastar de suas sandálias rasteiras. Os peitos estavam eretos como sempre e chamavam a jovem para frente. O dia estava claro e as nuvens carregadas do março foram levadas pela madrugada, mas o sol estava triste, e mesmo vivo não conseguia abafar o cheiro de terra molhada do jardim da escola. A manhã estava sorrindo de maneira singela através dos primeiros raios de sol e Bia não costumava se adiantar, mas o acaso a trouxe mais cedo naquele dia, mais cedo que quase toda a escola. Bia sentou em um velho banco, longe de tudo, abriu sua mochila e retirou um pequeno caderno.

Minha Bia, minha inspiração.
Um dia o vazio vai bater independente da música ou do perfume, e mesmo em equilíbrio, você vai pensar em como poderia ter sido.
De Leonardo, aquele que te pertence.

|Beatriz dormiu e acordou pensando naquele pequeno caderno de capa verde e flores lilás. Tinha poucas páginas e um passarinho estava a observar quem tentasse abri-lo. Leonardo escreveu nele por meses e nunca mostrou nada a namorada, mas quando o fim se aproximou, aquela pequena lembrança foi à tentativa final. Leonardo se afastou da mesma forma como se aproximou, sem fazer barulho, sem perguntas e vazio em possiblidades de respostas. Bia morreu pouco a pouco por dentro sentindo as entranhas vivas em resposta as emoções por meses. Como alguém perderia um amor assim? E quem seria tão orgulhoso a ponto de não dar o braço a torcer? Muitas pessoas achavam que ambos se defenderam e superaram buscando o que eram em essência: Leonardo se encolheu para os outros, Bia incorporou o espírito da liberdade e foi viver várias dessas emoções momentâneas. Leonardo escrevia como nunca, Beatriz aprendeu a beber, em um mês fumou seu primeiro baseado em uma quadra abandonada com uns playboys que não sabiam tragar. Bia fez muito sexo, procurou parceiros diferentes e experimentou camisinhas femininas, era ruim, mas a vibe não poderia lhe dar um filho cujo pai seria um desconhecido na noite. — Isso estava sob controle!
Beatriz encontrou pretextos na noite, Leonardo encontrou culpa e produziu textos excelentes, sofrendo em coração, mas amando em linhas.

Minha Bia, minha inspiração.
Um dia cada um vai procurar um abrigo diferente, talvez eu encontre razões e você promessas. Acho que essa fonte destrutiva da qual bebemos um dia secará e nos deixará com sede. Seja forte.
De Leonardo, aquele que te pertence.

|Beatriz consumia aquelas linhas como em despedida, outra despedida, não mais de corpos, mas de presença. — Presença física, visual. Os beijos cessaram há tempos, os curtos papos e os grandes silêncios que os encantavam correram há algum tempo. O olhar que corria de Leonardo jamais seria esquecido, eles não terminavam frases e se escondiam para a direita, às vezes esquerda. Nem Bia sabia como. Tudo não era certeza naquela manhã, mas o vazio de Beatriz explicava mais que qualquer coisa. Faltaria algo de hoje em diante.
Alguns passos calmos aproximaram-se do banco em que a menina viajava.
— Beatriz? Bem cedo? — Disse Salvador com sua voz calma e acolhedora. Bia virou sem pressa enquanto fechava seu pequeno livro de lembranças.
— Bom dia, professor. — Disse ela sem força. — Não precisa brincar comigo... Não, eu não dormir dentro desses muros sujos.
Salvador riu.
— Eu não iria dizer isso. — Ele escondeu o rosto. — Alguns podem achar que você não sente nada, mas eu te conheço bem. Conheço a sua história e a da sua família. Cada detalhe seu. — Ele sentou ao lado dela.
— Eu sei disso...
— Você sente como poucos aqui, suas reações é que às vezes são desproporcionais. Sabe, Bia, alguns sentem a chuva, outros só se molham. Vi isso na internet e nem sabia que era de Bob Dylan.
— Bacana. — Disse Bia olhando para o pequeno caderno. — Você tem novidades para mim?
— Sim. — Ele tocou o ombro dela. — Nosso amigo Leonardo se foi.
— Para longe?
— Muito longe. O pai dele foi transferido pro sudeste, ele decidiu acompanhar. O mundo aqui talvez fosse pequeno para ele, Leonardo não poderia se prender por esses ventos fortes que não carregam ninguém. Nem por você, nem por esse livro.
— Não tem como ficar triste, mas Leonardo será lembrado assim. — A Beatriz dos sonhos de Leonardo pareceu incorporar a menina. — Como algo bom, apenas bom. Sem defeitos, sem fim.
— Concordo com você. Esse fim é bem melhor, afinal os vícios do ser humano, aqueles que não se conseguem controlar termina destruindo encantos.
— Então Léo nunca será esquecido, nem assumirá defeitos. Será perfeito, e vai tá aqui nesse caderno. Olhe isso! — Ela o abriu novamente.

Minha Bia, minha inspiração.
Sabe quando os defeitos não transbordam e o melhor da gente não é levado embora? Pois assim serei, tenho certeza. Não ousarei assumir o "para sempre" e te decepcionar como todos fazem. Sairei assim: leve e perfeito. Vou estar aqui nessas linhas e embora não me ames mais, não me esquecerás jamais. Prefiro ser uma boa lembrança a um mau amor.
De Leonardo, aquele que te pertence.

|— Parece que ele lia tudo sobre vocês. Parece que ele já sabia cada passo. — Falou Salvador. — E por que ele continuou e tentou?
— Acho que para ter certeza. — Respondeu a menina.
— Verdade. Leonardo queria certezas.
— E ele acertou... — Ela fechou novamente o caderno. — Melhor assim, a distância vai deixar boas lembranças.
Salvador decidiu sair.
— Professor! — Disse Bia com a voz em transformação.
— Oi?
— Acho que nunca amei Leonardo, nem muito menos a mania dele de ir de bicicleta me visitar. — Ela levantou.
— Só o tempo explica a intensidade do amor, Bia. Só o tempo poderá dizer.
— E se amei, posso amar de novo? — Os olhos dela brilhavam.
— Claro que sim... Acho difícil se permitir a isso, mas muitos amam diversas vezes. Mas cada história é uma nova história. — Salvador pensou um pouco, arrumou o lado direito da calvície com trechos grisalhos. — Mais alguma coisa?
— Sim... — Ele esperou interessado naquele assunto que também o causava reflexão. — O que eu devo fazer então se já sou apaixonada por outra pessoa?
— Acho que você tem que ler se o sentimento é reciproco e se entregar. O tempo é muito curto pra guardar tanto amor. Você não acha? — Ele chegou perto dela e a tocou no ombro. — Olha... Eu nem sei como é essa coisa de superação, mas sei muito bem sobre as coisas que perdi. Sei também que você é tão jovem, que o seu hoje pode ser a melhor época da sua vida se você fizer exatamente o que quiser, e o que seu coração mandar.
— Penso assim também.
Ela encarou com carinho o professor.
— Mas cuidado, o amor depende de duas pessoas pra valer a pena.
— Você diz que esse é meu tempo? Certo! — Ele balançou a cabeça. — Então todos esses amores serão os mais marcantes?
— O seu tempo sempre vai ser o presente, sempre! Acolhe as chegadas e esquece as partidas. — Ele desviou os olhos e ela sorriu.
— Obrigada... — Ele ouviu as últimas palavras da menina e saiu pensativo.

"ONTEM TE VI NA RUA" Where stories live. Discover now