||_Força_||

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– Vamos, Sávio, tome mais alguma coisa... Só mais algumas colheres! – Pedia com paciência uma linda mulher de cabelos vermelhos, vermelhos rebeldes.
– A ânsia de vômito aumenta cada vez mais. – Disse Sávio promovendo uma careta.
A pequena casa era desorganizada e minúscula, as paredes eram baixas e os buracos no teto apresentavam raios de luz. Sávio, um jovem pálido de pouco mais de vinte e oito anos estava enfermo sobre uma cama, seus cabelos haviam caído, seus olhos estavam abatidos. Tudo parecia agonia, menos a força que irradiava de Ana Moura, a ruiva que guarnecia aquele jovem moribundo. Sávio tinha leucemia, as idas e vindas ao hospital fragilizaram ainda mais a saúde do rapaz, Ana largou o emprego e se mantinha com o seguro do governo, tudo para poder ficar mais próximo de um centro de referência que tratava desse tipo de doença.
Era ela e seu grande amor, juntos na dor.
– Que bom que elas estão terminando. – Disse Ana se referindo às sessões de quimioterapia. – Espero que essa doença se afaste de uma vez.
– E se a cura não vier? – Disse ele levantando os olhos penosamente.
– Temos que encontrar um doador... Se ainda houver tempo. – Ela pôs o prato com a sopa barata sobre uma mesa à direita.
– Ainda bem que tenho você aqui... – Disse ele passando a mão nos longos cabelos de Ana. – Que sorte eu tenho!
– E estarei sempre aqui, Sávio, lutei toda minha vida por você. Eu sei que você é forte. Foi por seus músculos que estremeci. – Ela deixou escapar um sorriso.
– Apaixonou-se por músculos? – Ele quis rir.
– Não, eles me chamaram... Depois fui aprendendo a gostar de cada parte desse corpo, e vou lutar por ele... Afinal, acho que tenho a posse. – Os dois riram alguns segundos, depois só o silêncio ficou.
– Será que estou pagando hoje os pecados de ontem? – Deixou escapar Sávio.
– Não consigo ver nenhum monstro aí dentro. Quando jovem, no colégio, você errou bastante, mas talvez pelas revoltas da sua casa. – Silêncio novamente. – Você quer me contar algo, Sávio?
– Não seria bom... – Ele perdeu a vista, ela sentiu o medo que ele transparecia.
– Só restamos nós dois; cada um de nós é o melhor confidente do outro. Todos se foram... Todos. – Ela se arrumou na cadeira ao lado da cama e penetrou os olhos nos do jovem deitado a sua frente.
– Causa medo... – Disse o rapaz.
– Estou pronta! – Ela segurou a mão do rapaz, Ana já sabia do que tratava.
– Sonhei novamente com Eron de Menezes... – Disse Sávio.
Ana Moura encostou-se à cadeira lentamente, não conseguia compreender a presença do colega de classe anos atrás em sua vida e na do seu companheiro.
– Você acha que paga hoje o mal que fez àquele pervertido? – Perguntou ela.
– Talvez. – Soltou Sávio virando o rosto para uma foto sua que decorava uma escrivaninha.
– Você nunca matou ninguém, Sávio, nem sumiu com o corpo de ninguém. Ele te odiava, eu sei... Mas talvez merecesse tudo que passou.
– Só não entendo o que ele faz nos meus pesadelos. – Sávio trazia uma culpa em cada nova pausa.
– Eu também queria saber. – Disse Ana. – Precisamos orar... Afastar de nossas cabeças esse assassino que anda solto por aí! – Ana pegou uma bíblia que estava na cabeceira da cama. – Temos que tirar esse maluco de nossas vidas de uma vez por todas. Temos uma doença para tratar.
– Eu poderia ter testemunhado... – Completou Sávio.
– Aquela menina metida tem que sair de nossas vidas, que a alma dela descanse e nos deixe em paz! – Ela fechou o livro antes de ler qualquer coisa – Vamos viver nossas vidas! Seja lá onde ela estiver; se morreu ou apenas resolveu andar por aí e virar notícia, vamos tirar essas pessoas da nossa vida... Vamos viver apenas a nossa vida! – Repetiu. – Será que nossos problemas já não são o bastante?
Sávio ficou calado, apenas levou o olhar ao longe. Ana o abraçou e deixou cair uma lágrima. O jovem doente parecia ser seu troféu, ela jamais o perderia, tinha sofrido muito por ele.

||...||

|Os corredores já estavam lotados para mais um dia de aula, mas Beatriz estava sozinha em frente às molduras de todos os formandos nos últimos anos, infeliz no pequeno corredor onde os espertos se escondiam dos coordenadores quando eram expulsos de sala. As pernas da jovens balançavam aceleradamente e ela se mantinha ereta com os seios em fuga para fora da blusa azul marinho. Um ou outro admirador que a desejava na solidão das perversões adolescentes passava e fotografava com o olhar os fartos seios. Os "carinhas" de 15 anos, aqueles que se masturbam três vezes ao dia, em um processo que só trazia mais dúvida e desejo; tinham dúzias de fotos de Bia em seus celulares, alguns arriscavam uns vídeos da menina com os shorts apertados jogando vôlei nas terças e quintas. Ela achava isso o máximo.
– Minha querida, vamos para a aula de biologia? – Chamou Salvador ao perceber uma Beatriz fora de órbita. – Ele tocou no ombro dela sem conseguir sua atenção.
– Professor...
– Oi? – Salvador tentou acompanhar os olhos de Beatriz.
– Tem algo errado hoje nessa escola. – A voz atrevida estava mórbida e sem vida. – Algo muito errado...
– Como assim, Bia? – Salvador girou o corpo e se ligou à direção dos olhos da menina.
– Quem fez isso, professor? – Disse ela levantando. Salvador permaneceu imóvel em sua contemplação.
O quadro da turma de onze anos atrás estava com o vidro quebrado.
Beatriz e Salvador permaneceram ali, cada um em volta de seus mais estranhos sentimentos.

"ONTEM TE VI NA RUA" Where stories live. Discover now