• Sobre as memórias da Rua dos Sonhos: Janela Quebrada.

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|— Dona Sara? — Perguntou Guilherme percorrendo os corredores de sua casa. — Mãe?
— Oi, meu príncipe. — Disse a senhora arrumando os cabelos entre o sofá e a estante empoeirada. — Você demorou tanto.
— Nada disso, fui só gastar meu sábado adiantando algumas coisas. Agora o seu filho só quer cama e sono. — Ele deu um cheiro na cabeça da mãe e arriou com tudo na velha poltrona.
— Não vá sair escondido! — Disse a mulher perturbada ao levantar. Guilherme entrou em suas lembranças e lembrou-se de quantas vezes Dona Sara o pedia esse favor.
— Faz tanto tempo que a senhora não me pede isso, mãe.
— Acho que seus remédios podem estar me curando. — Ela estava muito bem. — Lembro bem das suas fugas, lembro bem de quando você sumia e se largava naquela casa número sete. — As fugas de Guilherme estavam acessas na memoria da mãe, aquelas tardes de domingo estavam tatuadas em Guilherme e permaneciam em algum lugar da fraca memória da Dona Sara. — Estou indo pro meu quarto. Pode fugir. — Ela abriu um sorriso carinhoso.
Não era noite, mas a tarde era engolida pela escuridão singela que cobria boa parte do horizonte. O laranja das laterais do céu coloria até onde a vista do professor podia ir através da janela. O sol já estava em outra direção, e uma lua, parecendo um ponto branco no céu se apressava antes das estrelas que logo surgiriam. Há onze anos os fins de tarde eram dias perfeitos para os encontros com Iris Almeida. Não que fosse perigoso, mas se os jovens fossem descobertos em seus encontros amorosos, o mundo poderia desabar. Os beijos e o sexo compartilhados naquelas tardes e início das noites eram calorosos demais para serem surpreendidos, ou talvez atrapalhados. Era amor de dois, era par, como deveria ser.
Guilherme voltou-se as suas lembranças.

||...||

|O jovem Guilhar não lembrava, mas seu primeiro beijo foi aos quinze anos com uma ruiva que tocava violão no corredor dos esquecidos. Ele lembra que era um jogo, um jogo idiota, e a primeira experiência foi horrível. Ele não era experiente no assunto, mas aquela situação não trouxe tudo que ele esperava de um beijo. Antes de beijar Iris, Guilherme beijou meia dúzia de garotas, todas mais jovens que ele, Iris Almeida beijara apenas dois garotos antes de Guilherme, e ambos eram mais velhos que ela.
Guilherme e Iris tinham dezesseis anos quando os fatos a seguir ocorreram.
O segundo ano do ensino médio trouxe muita segurança aos mais descolados, afinal, o último ano estava logo à frente. As meninas desenvolveram seios, algumas estavam contentes com isso, outras não possuíam volume algum, e outras poucas escondiam os seios que extrapolavam os sutiãs de números bem elevados. Elas não precisavam mais pesquisar sobre os garotos, como havia sido no ano anterior, elas já tinham seus escolhidos que, na maioria das vezes, estava uma série à frente ou tinham acabado de sair do colégio para fazer algum curso superior financiado pelo governo. As calças estavam apertadas, as blusas pediam decotes cada vez mais apresentáveis, e as "festinhas" estavam no calendário. Iris tinha apenas uma amiga, Clarice, uma menina pequena, branca e de olhos tão azuis que ofuscavam. Iris não costumava ir para as festas, assim como Clarice, então as duas se guardavam entre seu material escolar e as conversas de fim de semana. Uma vez, um rapaz do terceiro ano fez um aniversário e elas apareceram, roubaram a cena. Dizem que naquela noite mais de vinte meninos levaram um "fora" de uma das duas.
O tempo e a moda no início dos anos 2000 fez os cabelos cacheados de Íris Almeida se transformarem em longos cabelos loiros e lisos como seda. Eles brilhavam, e nenhuma outra garota daquela faixa da cidade sabia qual o segredo. O nariz empinado da menina da Rua dos Sonhos era fino e se ligava aos olhos castanhos perfeitamente, castanhos claros, claros de verdade, encantavam quando em contraste com as mechas loiras e sempre bem lavadas. Clarice, sua sombra, era maravilhosa como a amiga, mas quando ao lado de Iris Almeida, qualquer mulher passava despercebida. Era impossível dividir a atenção com a menina da Rua dos Sonhos.
Guilherme aprendeu a tocar violão, ficava mais no corredor dos esquecidos, apesar de ser considerado o garoto mais charmoso da escola. Ele caminhava ereto, como poucos, tinha um bom vocabulário e sua massa muscular lhe dava três anos a mais de idade. Enquanto o pagode estourava nas rádios ele cantava Eric Clapton, adorava Tears in Heaven e mandava muito bem "Longe do meu Lado" do Renato; pros mais velhos, Guilherme tentava impressionar com Claudio Baglioni e a bela canção "E tu como stai?". Cartola e "Que sejas bem feliz" era sempre a terceira música que ele tocava quando juntava mais de meia dúzia de pessoas.
Íris e Guilherme, apesar de vizinhos, eram pouco íntimos. Sem explicação os dois se afastaram nos anos que se seguiram depois que Guilherme chegou, não havia explicação para a distância que os dois mantinham, mas nos olhos de ambos uma forte curiosidade impedia que fizessem essa pergunta um para o outro.
Um dia, um novo professor chegou à escola, ele veio prometendo uma didática diferente, era jovem e muito empenhado nos estudos da biologia. Seu nome era Salvador, era alto, tinha a barba sempre por fazer e um sorriso sempre exposto, independente da situação. Entre as diferentes salas de aula, a de Íris, Guilherme e companhia, foi a mais receptiva ao novo homem daqueles corredores e, em pouco tempo, Guilherme e o novo professor se tornaram bons amigos.
— Quantos aqui pensam em adaptação como estilo de vida? — Perguntou o professor escorado com uma das pernas sobre o birô desgastado.
— Estilo de vida? — Perguntou Ana Moura encostada na parede, balançando suas pernas em desenvolvimento.
— Isso... O quanto é importante a palavra adaptação para cada um de vocês? — Ele fez uma pausa e observou cada um que ali estava. — Você, meu querido. — Salvador apontou para Eron de Menezes e seus cabelos negros sobre os olhos. Eron esticou-se na cadeira, parou um pouco e olhou para baixo, diminuindo-se.
— Acho que adaptar-se é para os fortes, professor. — Disse Eron para uns quarenta alunos ao redor. — Alguém riu. Salvador identificou e passou a pergunta.
— Você... Isso! Você que riu do amigo. — Sávio ficou vermelho e levantou o peito saudável para enfrentar o professor. — Você se adapta bem ao ambiente?
— Creio que sim... — Disse Sávio olhando para os amigos ao redor buscando aprovação. — Creio que sim...
— Não, meu querido, definitivamente não soube se adaptar ao momento da sala da aula. — Sávio espremeu um sorriso. — E da próxima vez que você rir da opinião de um dos seus amigos, você saberá o quanto é fraco e sairá por aquela porta. — Eron levantou a cabeça e correu os olhos até Guilherme, que piscou para o amigo e deixou escapar um sorriso.
— Eu te falei! — Disse Guilherme baixinho para não atrapalhar a aula. — Esse cara é gente boa... — Eron balançou a cabeça positivamente.
— Voltando... — Salvador estalou os dedos e puxou a atenção novamente da sala. — Bem, como afirmou o amigo ali atrás, quem melhor se adapta, se sobressai; lembrando que sem adversidade, não existe evolução. Assim, os que melhor se adaptam, são os mais fortes. Ambiente e tempo de adaptação são fatores importantes.
— E quem não se adapta? — Perguntou Iris.
— Quem não se adapta tende a sofrer mais, pois adaptação gera equilíbrio. — Todos estavam atentos, Eron acompanhava cada balanço dos lábios de Iris.
— E quem desistir de lutar contra essa adaptação constante. Seria mais fraco? — Perguntou Iris novamente.
— Desistir, minha querida, em relação à adaptação é negar a própria existência. É abrir mão da evolução. — Disse Salvador tocando o ombro de Íris.
— Então toda evolução requer um sofrimento? — Perguntou Guilherme.
— Eu diria um esforço. — Salvador caminhou para o outro lado da sala.
— Então a morte seria o melhor caminho para quem não se adapta. — Disse Eron sem ser acionado.
— Talvez. A natureza sempre vai fazer seu trabalho. Afinal, nossos atos também fazem parte da natureza e desse conjunto todo. — O silêncio tomou conta da sala e em segundos o sinal para a saída tocou.
Sávio saiu pulando pelas cadeiras, Ana Moura correu os olhos sobre ele. O rapaz parou ao lado de Iris e tentou falar algo de interessante. A menina da Rua dos Sonhos apenas deu um sorriso falso e caminhou atrás de Clarice. Guilherme ficou esperando Eron arrumar seu material e colocar sua mochila como se fosse a primeira vez.
Eron de Menezes era organizado e sistemático, calado e gentil. Os anos passaram, a timidez permanecia, e o jovem Guilhar era seu único amigo.
— Vizinho, sua organização é admirável. — Disse Guilherme.
— Sua percepção também, meu amigo. — Eron não olhou para Guilherme e continuou. — Acho que alguém quer dizer algo a você. — Eron não levantou a cabeça.
— Como assim? — Perguntou Guilherme.
— Olhe na porta. — Pediu Eron em voz baixa. Guilherme entendeu e cruzou com os olhos de Iris. — Acho que ela quer falar com você.
— Comigo?
— Sim... Certeza. — Disse Eron fechando a mochila e colocando-a nas costas.
— Poderia ser com você, vizinho. — Sugeriu Guilherme dando os primeiros passos. Eron virou e encarou o amigo como nunca.
— Não sou tão capaz... — As palavras de Eron soaram ásperas. Guilherme viu o amigo passar por ele e atravessar a porta sem levantar a cabeça.
Iris Almeida esperava Guilherme.
— Oi. — Disse Iris sem levantar a voz e os olhos.
— Oi... — Guilherme parou, em segundos viajou por todo o corpo da menina que pedia sua atenção. Ela estava linda. A blusa de alças azuis estava coberta pelo balançar do cabelo loiro que foi jogado propositalmente para frente. Os olhos claros traziam a tona uma falta de confiança e uma duvida sobre resultado daquela conversa.
— Meu avô não pôde vir me buscar hoje, e logo vai anoitecer. — Começou ela arrastando a voz.
— Precisa de carona? — Antecipou Guilherme. — Eu não tenho carro.
Iris deixou escapar um sorriso sem graça, não conseguiu responder imediatamente. Guilherme notou.
— Companhia? — Tentou o garoto mais uma vez.
Ela riu.
— Sim, claro que sim. — Guilherme entendeu e deixou que ela prosseguisse. — Não costumo ficar até tarde sem meu avô vir me buscar. — Ela cantava aos ouvidos do vizinho. — Então meu avô me ligou e pediu que eu encontrasse alguém para me acompanhar.
— Sem problemas, vamos no bom e velho buzão. — Ele tocou o ombro dela. — Se tivermos sorte hoje, vamos sentados. Vamos? — O jovem Guilhar esperou os primeiros passos dela, e juntos caminharam por entre aqueles corredores curiosos.
O silêncio foi mais forte que qualquer outra coisa, e ambos permaneceram calados até o ponto de ônibus. A escuridão estava próxima e Iris tinha bastante razão em não querer enfrentar sozinha aquela rua escura e deserta que guardava a parada do ônibus que os levaria até a Rua dos Sonhos. Sentado no ponto de ônibus só existia mais uma pessoa, Eron de Menezes.
— Eron, pensei que me esperaria. — Disse Guilherme ao chegar com Iris.
Eron ouvia algo muito alto no seu MP3 paraguaio, os olhos negros deixaram as sobrancelhas baixarem. Ele retirou os fones do ouvido e mostrando nenhum controle respondeu.
— Não havia necessidade, vocês estão acompanhados. — Ele baixou a cabeça. — Eu só atrapalharia.
— Que nada cara! Somos amigos. Sem falar que pegaremos a mesma condução, vamos para o mesmo lugar. — Guilherme não entendia a postura do amigo. Eron olhou para Iris, depois encarou Guilherme.
— O nosso ônibus está vindo, aproveitem o tempo que nunca tiveram. — Eron colocou os fones de ouvido e levantou. — Vamos embora.
Eron deixou que Guilherme e Iris entrassem, esperou que eles escolhessem o lugar e atravessou o ônibus inteiro sentando na última fileira com uma cara não muito boa. Guilherme e Iris se olharam ao se darem conta que estavam juntos, colados pelos ombros voltando para casa.
Guilherme se lembrou do primeiro dia que viu Íris descendo a Rua dos Sonhos anos atrás, lembrava-se de cada detalhe. Hoje ele sentia o seu perfume, e os ventos fortes que entravam pela janela do ônibus jogavam o cabelo dela em seu pescoço. Algum assunto deveria servir para aquele momento, a aula, alguma coisa engraçada na internet, mas não, Guilherme estava tão encantado com a oportunidade que preferia o silêncio a quebrar aquele momento com algo que não fosse propício. A noite já se instalara do lado de fora, as luzes passavam rápido e Guilherme acompanhava cada uma delas se antecipando em cada gesto ou atitude, seu corpo não era controlado mais pelo seu cérebro e ele não encontrava lugar para colocar as mãos. O ônibus balançava e poucas pessoas eram iluminadas por aquela luz branca do centro do veículo, todos estavam em seu mundo pessoal, pensando nas contas do fim do mês, na música número um das paradas que tocava ao fundo baixinho.
Iris entendia todo aquele momento que desejara há vários anos, aquela história sugerida por Clarice era perfeita, seus avós haviam viajado para uma granja recém adquirida com o dinheiro da aposentadoria e chegariam bem mais tarde, poderia ser a oportunidade para conhecer e conversar melhor com o menino da Rua dos Sonhos, o garoto do violão e do corredor dos estranhos. Guilherme Guilhar sempre foi seu amor, desde aquele dia em que descia a Rua dos Sonhos e o viu de longe ao lado do Monsenhor no pátio da igreja. Ele tinha algo diferente desde o início, ele era gentil e atencioso, sem contar na voz que a estremecia sempre que uma música "cafona" dos Menudos era cantada por ele e dizia que "A noite não tinha luar". Ela o viu crescer junto com ela, mas talvez o que sentia o tirou do caminho dele, e Clarice achava a mesma coisa. A amiga dos olhos azuis achava que Guilherme era louco por Iris, assim como todos os garotos que tinham um saco escrotal e gostavam de mulher naquela escola.
— Iris, Guilherme gosta tanto de você que isso o atrapalha em tomar alguma iniciativa. — Dizia Clarice costumeiramente. — O problema é que ele não é o tipo de garoto que gosta de concorrência. Acho que sua beleza e as investidas dos outros garotos o afastam. — Continuava.
Iris sabia de todas as garotas com que Guilherme tinha ficado, ela escrevia num canto do caderno e passava a pesquisar a vida delas. Por vezes, a menina se diminuía e chorava por não ser uma daquelas garotas que ganhavam a companhia do jovem Guilhar. O tempo passou e nem todo amor do mundo poderia salvar aquela história se ela não agisse.
A noite de Eron não era a das melhores, algo o atingia ao ver a cena romântica entre Iris e Guilherme. Ele, no fundo sabia que eles se amavam, estava na cara dela todos os dias na escola ou quando se batia com Guilherme na Rua dos Sonhos. Sua amizade com Guilherme o fazia entender quando ele tocava no nome dela e como o rapaz a observava.
Talvez por isso Eron de Menezes a admirasse tanto e a desenhasse tanto em seus rabiscos no caderno. O coração de Eron estava em pedaços, tantas noites de contemplação e de idealização o deixavam com esperança, mas outra pessoa roubaria seu grande amor. Ele teria que aceitar e continuar sua vida solitária. Sem nunca achar que Deus era injusto na maioria dos casos de amor, pois o fracasso era mais notável que o fim romântico. Apesar de tudo, Eron sabia como o amor destruía e machucava as pessoas, e apesar de tanto carinho envolvido, aquela história teria um fim trágico. Eron sabia, sentia tudo aquilo, hoje só lhe restaria chorar baixinho para sua mãe não ouvir, desfazer planos e guardar aquele dia para sempre como seu fracasso. Hoje ele não iria agradecer ou pedir a Deus alguma coisa nova, hoje ele só tinha "porquês" em sua oração.
— O nosso ponto é o próximo. — Disse Guilherme a Iris. Eron passou em disparada pelo corredor do ônibus arrumando a mochila desgastada.
— Estranho. — Começou ela. — Mas sempre achei que essa viagem demorasse bem mais tempo.
Guilherme sorriu.
— O tempo tem dessas coisas, encurta dias perfeitos e prolonga dias ruins. — Ele esperou que ela se levantasse.
— Uma pena que só agora falamos um com o outro. Quantos minutos perdemos? — Guilherme ficou surpreso com a pergunta da menina. Ele olhou o relógio Cassio e respondeu.
— 15 minutos...
— Tudo isso? — Ela arregalou os olhos. — Ou seria pra você "Só isso"?
— Perdemos muito tempo... Muito tempo mesmo.
O ônibus balançava lentamente e, sem notarem, algo os aproximou de uma maneira diferente. Uma força maior que qualquer outra, sem necessidade de raciocínio lógico ou possibilidades de escolha; os dois se olharam mais uma vez, e dessa vez nada foi mais dito, surgiu apenas à necessidade de beijar, de dizer com lábios que algo mais existia para ser doado de um para o outro. Foi tudo tão rápido, sem script, sem choro ou pedido. Foi apenas um beijo, um beijo lento, diferente de todos os outros que ambos já haviam experimentado, não pela performance, mas pela certeza que seus lábios combinavam. Não foi necessário horas de língua, tudo durou menos de 10 segundos, e quando os olhos se abriram, os dois deixaram a vista cair, e sentiram naquele instante que aquele havia sido o melhor dia de suas vidas.
Eron viu tudo por trás dos ombros.

"ONTEM TE VI NA RUA" Where stories live. Discover now