||_Confessionário_||

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|Um novo dia nasceu e os raios encontraram uma brecha. O professor finalmente parecia descansar em seu leito provisório, Sara estava na cozinha revirando algumas panelas e tentando preparar algo para o filho. Ele despertou, abriu os olhos devagar e procurou pela mãe ao seu lado, não a encontrou.
– Dona Sara? – Gritou ele. — Na cozinha bem cedo?
– Sim. – Retribuiu Sara. – Ele admirava a força de vontade dela, pois mesmo com tantos obstáculos, sua mãe se esforçava e tentava realizar os trabalhos diários do lar. – Estou fazendo seu café da manhã.
Guilherme levantou, observou o grande relógio da sala e concluiu que tinha pouco tempo entre sua primeira refeição e o horário a cumprir na escola.
– Vou me servir, mãe, pois tenho que me arrumar às pressas. Estou atrasado. – Em dez minutos o jovem Guilhar já estava pronto, usava um jeans e uma camisa de botões branca, visivelmente mal passada. Guilherme sentou a mesa admirando o olhar de Sara.
– Nós dois dormimos no sofá outra vez... – Deixou escapar ela enquanto batia a colher nas bordas da xícara. – Você estava com medo, meu filho?
– Não, mãe. Estava cansado e com dor de cabeça. Fiquei no sofá para pensar um pouco, colocar a cabeça no lugar. Acabei adormecendo. – Ele deixou escapar um falso sorriso. – Ela apenas suspirou.
Guilherme comeu rapidamente suas torradas e levantou.
– Tenho que ir mãe, até mais tarde...
– Deus te abençoe. – Gritou ela, mas Guilherme já estava longe.

Guilherme pôde ver o céu mais limpo, sua visão foi ofuscada, o claro era radiante. Os pássaros transmitiam todo o ambiente em cantos serenos e de um equilíbrio sonoro fascinante. Subitamente o professor sentiu o cheiro da terra limpa e lembrou-se das manhãs com o pai, dos domingos que não haviam sido guardados em fotografias, mas que mereciam. Lembrou-se da rua mais viva e da ansiedade que sentia ao passar em frente à mansão número sete. Ao lado, a igreja o acompanhava, o jovem sentia que ela o aguardava novamente, Guilherme foi durante muito tempo coroinha, conhecia muito bem aqueles altares.
Sobre a calçada de mármore, observando o jovem, estava Monsenhor Hernandez, um Latino de olhos rasos, com sua batina escura e seus inconfundíveis cabelos grisalhos. O homem que sabia o segredo de todos daquela região, uma caricatura cravada à Rua dos Sonhos. O velho passara dos setenta, mas ainda demonstrava seus dotes com a oratória, era um conselheiro persuasivo. Com o canto dos olhos, Guilherme acompanhou o olhar do Monsenhor durante toda sua caminhada até a parte mais alta da rua, e quando a distância permitiu, o professor dirigiu os olhos por trás dos ombros, Hernandez o encarava. Guilherme acenou timidamente com a mão, o velho padre baixou os olhos.

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|Hernandez sempre foi ativo na comunidade, chegará a Rua dos Sonhos em meados da década de 1980; sua visão sobre Guilherme era extensa e complexa. O velho sabia de fatos escondidos, mas seu ofício como sacerdote de um confessionário o impossibilitava de algumas atitudes. Monsenhor recebera o título eclesiástico concedido pelo próprio Papa, prometendo honrar cada passo guiado a Deus e aos dogmas atribuídos a ele por sua religião. Hernandez amava o que fazia, mas algumas pedras o encontraram no caminho, era duro e causava insônia. Conselhos foram suas armas e há anos carregava um fardo enorme, pensou em deixar a paróquia, aposentar-se e talvez morar em outro lugar, mas não podia sair dali, não enquanto as coisas não se arrumassem.

Monsenhor Hernandez não esperava pela justiça terrena, esperava a dos céus.
O céu limpo transformou Hernandez em um pensador sobre os fatos ocorridos ali no passado, – como eles eram jovens – pensou ao ver Guilherme subindo a Rua ao longe, dando as costas ao mar de lágrimas que aquele lugar carregava. Atrás do sacerdote alguém passou ligeiramente em busca de algo que renovasse a fé, algo que só a igreja poderia abraçar e acolher. Hernandez não olhou para trás, seus olhos permaneceram na casa mais pobre do lugar, que naquela manhã estava iluminada em seu abandono. Todos deram as costas àquele lugar, ali morou um monstro julgado pela mídia, seus crimes foram julgados deploráveis pela sociedade, seu corpo abusado por outros criminosos e outras leis humanas; os repórteres queriam fotos, mas Eron possuía aversão aos flash's desde sempre. As janelas mofinas ao lado da parede suja tinham os vidros quebrados, e depois daquele domingo de sangue e dor, Hernandez só viu Eron de Menezes mais uma única vez.

Logo que os boatos sobre o jovem começaram a circular, o descontrole de uma dúzia de pessoa em busca de vingança contaminou centenas, as pessoas queriam respostas imediatas, como um café amargo que poderia ser responsável pela atenção depois de uma noite de insônia. A rádio local enviou um velho dizimista como locutor para frente da igreja a fim de acompanhar o caso e tentar arrancar algo do Monsenhor. Duas grandes emissoras do país estacionaram suas vans, e umas três loiras se intercalavam com as entradas ao vivo. Quando a foto de Eron apareceu no jornal pela primeira vez, centenas de pessoas foram para a porta da casa do pervertido. Entre gritos de ordem e palavrões, um Eron assustado apareceu no primeiro andar, os olhos gritavam, e a angústia trazia a dor do estomago para os lábios que tremiam sem controle. O rubro do sangue descia pela testa do garoto e corria pelo seu nariz. – Eles o acertaram. – O jovem ferido fez a multidão ir ao delírio, e a fraca situação de Eron em vez de controlar os mais exaltados, aguçava o ódio dos que ainda não demonstravam tanta irritação.
Uma chuva de pedras atingiu aquela pequena casa na tarde morna.

Eron correu a vista e viu sua plateia nervosa, pessoas que desejavam sangue por sangue como ato de reciprocidade. O medo não tirou o pervertido da razão normal, que conscientemente buscou abrigo e deixou escapar com os olhos um pedido de socorro, esse pedido foi feito em silêncio para Hernandez que, fora da luz das câmeras, assistia ao longe o pequeno Eron ser punido lentamente.
Aquele último olhar jamais saiu da cabeça do Monsenhor Hernandez.
O sacerdote sentiu suas forças irem embora como sempre. O seu dia acabava quando isso acontecia, e Hernandez resolveu entrar de volta na igreja e continuar com os seus afazeres.
O velho entrou e se encontrou com o vazio da igreja, a porta aberta proporcionou a entrada de alguém há pouco tempo, mas Hernandez não sabia de quem se tratava. Os passos lentos carregaram o velho entre os bancos antigos e bem lustrados, os crucifixos gigantes nas laterais levavam até a imagem de Nossa Senhora, ao lado o confessionário esperava o Monsenhor. Uma das portas estava aberta, a outra guarnecia uma pessoa como de costume.

Hernandez entrou na pequena cabine de madeira e esperou pelas palavras do aflito do outro lado.
– Em que o nosso Senhor pode te ajudar, filho? – Perguntou Hernandez.
Um pequeno gemido vinha da outra parte da cabine.
– O que te aflige? – Tentou o Monsenhor outra vez. – Não importa teu pecado, o pai ama seus filhos e está disposto a perdoar.
Um choro baixo foi transmitido, uma dor amordaçada não deixava as palavras saírem. Monsenhor Hernandez perdeu o chão e seus olhos ficaram vivos e sem foco.
– Está disposto a compartilhar algo com o nosso Senhor? – Perguntou Hernandez.
Sem resposta. O choro aumentou e a pergunta que Monsenhor Hernandez temia em fazer saiu por impulso.
– Eron... – A voz do Monsenhor arrastou. – É você?
– Sim... – Misturada com sussurros de angústia, a voz vinda do outro lado do confessionário confirmou. O medo se instalou e o velho sacerdote fechou os olhos e começou a rezar o pai nosso.

"ONTEM TE VI NA RUA" Where stories live. Discover now