Capítulo 12

94 7 0
                                    

As águas do passado
Inundam minha mente no presente

Minha eterna curiosidade arrasta meu corpo para o leito do rio, queria que eu desse algumas braçadas e visse o que havia na face naquela rocha, mas resisti. A pedra não sairia dali e o adiantado da hora poderia transformar meu almoço em jantar.  Tratei de voltar para casa e partir rumo a mais uma missão desconhecida. Pelo menos nessa as pessoas estão vivas, ao que parece.

O percurso entre a minha porta e a do armazém nunca se fez tão lentamente. Era como se novas faixas de terra fossem sendo depositadas à minha frente empurrando tudo adiante. Mas venci a incalculável distância enquanto tentava me manter alinhado dentro da melhor roupa que encontrei.

Apesar de não concordar, as mulheres com quem tive algum contato até hoje sempre me elogiavam. Nunca vi nada de especial sou apenas um homem de estatura mediana, dono de cabelos claros que ainda não decidiram se crescem ou enrolam, olhos castanhos e uma inegável cara de derrotado, até ontem. Até ontem porque hoje sinto como se tivesse conquistado algo, nem que esse sentimento já fosse algo meu e que havia sido esquecido.

Encontrei apenas o velho Mat na venda, sentado como sempre à porta me inspecionando com o canto dos olhos enquanto fingia olhar para a floresta atrás de mim.

- Bom dia Mat. Louco para me enforcar não é mesmo? - Cumprimento.

- Só espero que você seja um bom marido para a minha filha. - Respondeu Mat olhando-me tão sério quanto triste.

As palavras que me acompanhavam até agora estão todas embaralhadas no chão. Não tinha uma resposta preparada para isso.

Rindo alto, Mat se levanta e batendo nas minhas costas convida:

- Não leve as palavras desse velho a sério. Já não sei o que digo faz tempo.

Finjo um sorriso enquanto ainda junto meus pensamentos do chão e o sigo quando este me chama com um aceno de mão. Passamos por detrás do balcão, chegando a um túnel escuro que liga o armazém a casa. Ouço o som dos nossos passos que são cortados por faixas de luz que nascem do teto e paredes. Sombras picotadas, pensamento ausente, sento algo novo, a combinação de medo e desejo, ansiedade e uma vontade louca de sair correndo daquele lugar.

O corredor acaba em uma porta de onde posso ver Dane organizando a mesa e meu coração tratou de acalmar meus pés. A poeira da ansiedade baixa, o medo se esconde em algum lugar, e o meu desejo por ela cresce sempre que ela me olha. Há tempos não me sento tão bem, tão vivo.

O almoço é servido. O clima é o de uma reunião de velhos conhecidos. Ouvimos as histórias pouco verídicas do Mat, algumas gargalhadas da Dane e desculpas para não falar da vida da minha boca. O tempo voou como sempre faz em ocasiões especiais, a comida acabou, os pratos foram retirados. A vida iria continuar com um pouco mais de brilho para mim. Devo ter roubado um pouco da luz daquele olhar no momento que beijei sua mão ao me despedir.

Voltamos eu e Mat para o armazém, desta vez eu só ouvia os passos dele. As asas que Dane havia me dado funcionavam muito bem. Pousei quando Mat puxou outra cadeira e me convidou para sentar:

- Marcus, não me tenha por louco, mas se existe uma razão que me fez continuar a viver todos esses anos foi a minha filha. E me puno diariamente por não ter sido homem o suficiente para ter abandonado tudo isso aqui quando o passar dos anos mostrou que a minha esposa não iria mais voltar.

Fiz menção de perguntar algo, mas o velho senhor tinha mais para contar e continuou:

- “Mais um mês” eu dizia para mim mesmo, e esse mês virou meses, que por sua vez deram vida há anos, e a essa altura já soma uma década. Dane tinha pouco mais de doze anos, quando Lally Aurora Kinsey, que quando colocava uma coisa na cabeça não havia quem a fizesse mudar de ideia, simplesmente desapareceu.

- E o que é ainda mais estranho Marcus, é que essa necessidade de continuar aqui desapareceu na primeira vez que você visitou este armazém.  Foi como se a âncora que me prendia a esse lugar tivesse sido levantada por você.  E agora não vejo a hora de partir levando Dane para um lugar onde ela possa ter algum futuro.

Não posso aceitar deixá-la nessa vila esquecida quando eu lhe faltar, jamais me perdoaria. Já roubei muito tempo da sua vida nessa minha espera sem sentido, devo uma vida normal a minha filha e tratarei de lhe dar. Quanto a Lally acredito que morrerei sem saber o que aconteceu, ou quem sabe na morte a resposta me seja revelada quando enfim nos reencontrarmos.

Ouvir que iriam embora não me fez nada bem. Sentia falta de algo que não era meu e carrego comigo uma saudade que não estava aqui quando cheguei. Essa poção dos sentidos amplifica tudo, infelizmente os sentimentos tristes também.

- Nos dias que antecederam o desaparecimento da sua esposa, não apareceu ninguém diferente. Alguém que possa... ter... enfim, a levado? - Pergunto medindo as palavras. Levantar a possibilidade de uma fuga amorosa foi só o que me ocorreu.

- Em uma bela manhã acordamos e não a vimos mais. Levou algumas peças de roupa e os nossos pensamentos. Se houvesse outra pessoa nessa história, mesmo que tardiamente, teria sido descoberta e isso ao longo de todos esses anos nunca aconteceu. Ela amava muito a filha e apesar de impulsiva e teimosa jamais a abandonaria assim.

O pior de tudo Marcus, é que eu também a amava. Gênio forte. Parecia ter fogo nas ventas quando ficava brava, mas durante o tempo que ficou aqui foi uma excelente esposa e uma mãe muito atenciosa. As roupas que ela deixou para trás estão devidamente arrumadas. Dane não se cansa de conversar com elas, isso me parte ainda mais o coração.

- Acho que sei como o senhor se sente, também já perdi alguém, ao menos acho que perdi. Mas voltando ao assunto, se precisarem de ajuda na mudança estou à disposição.  - Ofereço-me mais para ficar a par da data do que disposto a retirar Dane daqui. - Infelizmente por falta de opções não tenho para onde fugir.

- Quem sabe nossas direções não são as mesmas Marcus? - Ri maliciosamente o velho Mat.

- Jamais iria com vocês. Na primeira oportunidade irão me enforcar.  - Brinco já me levantando para seguir meu caminho.

Um sorriso emerge do oceano de preocupações que inundam o semblante do velho pai. Agradeço a hospitalidade e sigo para casa levando comigo uma nova história, um pouco mais de tristeza e a vontade de ver Dane novamente.

O Livro (Lizandra's Book)Onde histórias criam vida. Descubra agora