Capítulo 31

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Tentei me refugiar no mar
Mas jamais o alcancei

Antes de virar mais uma página, fui ver como estavam Dane, Mat e Lally. O cenário permanece inalterado, com o pai e a filha velando o sono da mãe. A exceção é o brilho no olhar da senhorita Kinsey, que ela me dirige quando vê minha aproximação. Apenas retribuo sorrindo e quando penso em voltar para minha leitura ela me chama sussurrando:

- Marcus poderia fazer um favor? - Pede a radiante Dane enquanto acaricia sua mãe adormecida.

Aproximo-me e aceno afirmativamente, não querendo falar para não acordar a senhora Kinsey.

- Você poderia chamar a tia Annie, tentando ser discreto em relação a minha avó? Precisamos dar essa notícia com muito cuidado. Chame-a aqui sem revelar o motivo. - Pede.

Concordo e já imaginando que teria de ficar com a senhora Paulina, levo comigo o livro e trato de esconder o frasco que me foi presenteado por Lally, antes de sair. Sigo arrastando meus pensamentos que se dividem entre eventos do presente e do passado. Não demoro até ver o rosto surpreso de Annie quando a chamo:

- Senhorita Annie. - Inicio.

- Em que posso lhe ajudar Marcus e obrigada pelo senhorita. - interrompe-me a solícita cunhada de Mat.

- Dane pediu para chamar você, há um assunto que ela gostaria de conversar, mas não me adiantou do que se trata. - Minto.

- E por que ela mesma não veio até aqui? Está mal das pernas por acaso? -

Resmunga enquanto se ajeita para sair. - Você pode ficar um pouco com a minha mãe, Marcus? - Dispara, perguntando o que eu esperava.

- Será um prazer Annie. - Respondo deixando-a passar.

- Não devo demorar. - Fala enquanto se afasta da casa.

Entro sem jeito, anunciando-me em voz alta para a silhueta da senhora recortada na penumbra do outro cômodo, com o olhar ausente na direção a janela:

- Senhora Paulina é o Marcus, lembra-se de mim não é mesmo? - Pergunto me aproximando dela.

- Aonde foi a desmiolada da Annie? Ela não sabe que já está na hora do meu chá? - Responde mal humorada à minha saudação.

- Posso providenciar o chá para a senhora, Annie foi atender um pedido de Dane e não deve demorar. - Rebato procurando onde posso encontrar o tal chá.

- Não se incomode, Marcus. Sente-se aqui e me desculpe, é que Annie tem me deixado louca. Ela não tem paciência comigo. Não é como Lally. - Diz a senhora suspirando o passado.

Sento no lugar indicado e deposito o livro sobre a mesa. O som deste movimento ecoa no silencioso ambiente:

- Trouxe algo Marcus? - Indaga Paulina.

- É só um livro, nada demais. - Revelo sem dar muita importância ao evento, levando em consideração que Paulina é praticamente cega.

- Posso segura-lo? Faz tempo que não vejo um. - Pede a saudosa senhora.

Deposito o livro com cuidado em seu colo mesmo sendo invadido por um inexplicável medo. Vejo Paulina carinhosamente sentir a textura da capa, com suas mãos marcadas pelo tempo, e folheá-lo como se o simples aroma das páginas pudesse ser lido. O ritual segue até a última folha, sempre exibindo um sorriso a cada página virada. O som do papel parece música nos ouvidos da senhora e a sinfonia só foi interrompida quando a página solta com o desenho caiu no assoalho:

- Minhas desculpas Marcus, acho que arranquei uma página. - Fala Paulina com um tom de preocupação.

- Não se preocupe essa folha já estava solta, não faz parte do livro é só um desenho que encontrei na minha casa. - Acalmo-a.

O livro é fechado enquanto junto a folha do chão. Quando tento guardar o desenho novamente dentro do livro a senhora Paulina pede para eu descrevê-lo, e enquanto o faço ela pede:

- Você poderia guiar meu dedo pelos contornos da figura?

Alerto que o desenho foi feito a carvão e que no final parte dele estaria em seu dedo. Isso não gerou nenhuma preocupação, mas de repente teve sua expressão nublada quando revelei o conteúdo da imagem. Lentamente percorri o desenho segurando a sua mão. Comecei pelo sol, segui para o adulto e quando terminei a criança uma gota d'água atingiu a folha e quando olhei para a senhora Paulina outra lágrima riscava seu rosto. Fiquei preocupado com sua reação:

- O que houve? Esta se sentindo bem? Posso fazer algo para você? - Disparo enquanto a expressão dela deixa desabrochar um sorriso e sua mão toca meu rosto silenciando-me.

- Estou bem Marcus, apenas me emocionei ao reencontrar esse desenho que fiz há tanto tempo atrás. - Revela Paulina, elevando ainda mais a maré do meu mar de dúvidas. - Morei um tempo em sua casa, assim que eu e o meu pai viemos para cá. Os Dundee estavam de partida e nos deixaram ficar. Foi um inicio difícil Marcus, tenho que admitir.

- Posso deixar o desenho com você, mas lamento informar que também desenhei no verso da página. - Informo.

- Pode me guiar no seu desenho também? Gostaria de vê-lo, da minha maneira é claro. - Pede a senhora.

- Não é bem um desenho, é só um símbolo que encontrei em uma rocha no rio perto daqui. - Digo traçando novamente as linhas segurando a sua mão.

Ao findar o contorno sua expressão voltou a se nublar:

- Pode guiar-me novamente Marcus? Acho que me perdi, deve ser a idade. - Diz com tom de preocupação.

O contorno é refeito e agora sem deixar dúvidas:

- Uma triluna! - Revela.

- Conhece esse símbolo? - Pergunto, sendo atingido por mais uma onda do meu mar de perguntas sem resposta.

- Sim, meu pai me contava muitas histórias sobre bruxas. Algumas usavam esse símbolo, que representa a grande mãe, a deusa, ou para alguns a natureza. Mostra as fases da lua e das mulheres: a crescente para a menina, a cheia para mulher e a minguante para a anciã, como esta que agora lhe revela isso. - Explica Paulina. - Oculta no verso da lua cheia está a lua nova, envolta em muito mistério. É um símbolo pagão que transfere o poder da criação para uma deusa e não para um deus, como prega a igreja. Então rapaz. - Diz enquanto aperta uma das minhas bochechas. - Não saia por ai mostrando isso para qualquer um.

- Eu me lembrarei do seu conselho. - Agradeço enquanto guardo o desenho, como se fosse possível alguém da igreja aparecer aqui.

- Quero descansar um pouco Marcus, você me ajuda a chegar até a cama? - Pede já tentando se levantar.

Retiro o livro do seu colo e a conduzo até a cama próxima. Encosto um pouco a janela e informo que estarei à disposição no outro cômodo. Seus olhos se fecham e um sorriso discreto nasce, como se boas lembranças agora lhe invadissem a mente.



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