Capítulo 21

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Meus sentimentos me cegaram
Tropeço nos pedaços espalhados de mim

A manhã despertou fria, regada por uma chuva fina que espelhou a vila, refletindo na estrada encharcada um céu cinza de uma tristeza familiar. Não havia como me guiar pelo sol, mas acreditava que havia trocado a manhã pela noite onde foi tão difícil conciliar o sono. Abri a porta e deixei a brisa úmida invadir o ambiente e o som distante de uma carroça chamou minha atenção. Vinha devagar sendo guiada por uma criatura magra coberta por um manto negro. Lentamente aproximou-se e o condutor, um sujeito muito magro e narigudo, cumprimentou-me com um aceno de cabeça.

Retribui o gesto e constatei que devia ser o responsável por abastecer o armazém dos Kinsey. Acompanhei com o olhar até que ele desceu da carroça. A imagem de uma Dane triste nasceu na minha memória e mesmo sob a chuva fina, minhas pernas me empurraram até o seu estabelecimento. A conversa foi interrompida com a minha chegada e Mat emenda:

- Se queria falar com ele, está ai o homem que procuras, Elliot. Esse é o Marcus.

- Sim sou eu, algum problema? - Pergunto sem entender o que estava acontecendo ainda chacoalhando a água do corpo.

Uma bolsa cheia de moedas voou na minha direção, bateu no meu peito e, tardiamente, a segurei com as mãos.

- Pegue! Seu tio Darrin pediu para lhe entregar quando soube que eu vinha para cá e como havia conseguido outro trabalho embarcado aproveitou a ocasião. Disse que em breve virá lhe ver. Mil perdões, Elliot Coel seu criado. - Falou se desculpando pelo arremesso certeiro.

- Obrigado Elliot e agradeça a ele se o encontrar antes de mim. – Pedi, meio sem graça com a situação.

Concordou com a cabeça e tratou de descarregar algumas caixas com alimentos frescos. Busquei Dane e não a encontrei, no sei lugar havia uma mulher mais velha me observando atenta.

- Essa é a Annie, minha cunhada, uma flor de mulher que conseguiu a proeza de nunca se casar. - Brincou Mat.

- Não achei nenhum homem bom o suficiente, mas se o garotão estiver disponível eu até poderia pensar no caso. - Respondeu Annie sem perder a pose ou retirar os olhos de mim.

- Acorde mulher, você poderia ser avó dele, tome jeito Annie Araya. - Bradou Mat.

- Pelo visto você já está ficando senil Mat. Olhe bem para mim, ainda sou uma bela mulher. - Retrucou Annie enquanto se ajeitava dentro da roupa.

De fato a cunhada de Mat não era uma mulher feia, mas tinha idade para ser minha mãe sem dúvida. Não quis entrar na briga e fui direto ao ponto que me interessava:

- Onde esta a Dane?

- Está cuidando da avó, que no caso vem a ser a minha mãe. - Respondeu Annie roubando as palavras da boca do Mat.

- A casa é aquela Marcus. - Apontou Mat para uma residência a centenas de metros do armazém.

- Volto mais tarde Mat. Não é nada importante. - Disfarcei enquanto pegava algumas frutas e me dirigia para os olhos dedicados de Annie.

- Foi Dane que me pediu para lhe avisar onde estava, mas é você quem sabe se vai ou não. - Concluiu.

Não sei explicar, mas saber que ela tinha deixado esse recado me alegrou. Paguei minha compra com uma das moedas recém adquiridas e parti, sorrindo por dentro, para a casa da dita avó.

- Não espere uma boa recepção por parte da velha, Paulina Araya  não é do tipo que gosta de visitas. Sendo sincero desde que minha esposa desapareceu, ela se trancou no seu mundo e nos trata como se tivéssemos culpa da loucura da filha. A Dane porque é muito boa. Eu não ponho mais meus pés lá. - Disse Mat gesticulando.

Engoli em seco o aviso, me despedi dos presentes e abracei a chuva até a casa da "amável" avó. Tão logo me aproximei da casa Dane me viu por uma janela e desapareceu em seu interior, surgindo na porta instante depois:

- Entre. 

- Não devo demorar, só queria...

- Rápido entre! Não precisa falar na chuva. - Insistiu Dane.

Não estava disposto a enfrentar a matriarca, mas fiquei sem escolha e assenti.

- Quem está ai? Gritou uma voz carregada pela raiva e pela idade lá de dentro.

- Conversaremos quando você voltar para o armazém, não quero atrapalhar. - Falei já com um pé na rua.

- A única pessoa de quem você tem que ter medo aqui não é ela. - Disse Dane me segurando forte pelo braço.

- É o novo vizinho, vovó. O Marcus de quem lhe falei.

A resposta foi um silencio tão frio quanto a chuva, típico de uma emboscada. Pude ver os olhos da senhora brilhando na penumbra do outro cômodo. Dane fechou a porta atrás de mim e guiou-me até próximo da avó.

- Sente-se rapaz, não dê ouvidos ao louco do Mat, ele deve ter dito horrores a meu respeito, aquele maldito. A única coisa certa que ele fez na vida foi minha neta. - Iniciou Paulina.

- Com a parte da neta eu posso concordar, realmente ele fez um bom trabalho, mas penso que Dane é mais parecida com a mãe do que com o pai. - Respondi.

Paulina riu da minha resposta e caçou meu rosto no ar com as mãos.

- Chegue mais perto rapaz. 

- Ela só enxerga vultos Marcus. - Falou Dane promovendo o encontro do meu rosto com as mãos da sua avó.

Ela contornou meu rosto lentamente e apertando minha bochecha concluiu:

- É um belo rapaz Dane, se não for do tipo burro como o seu pai trate logo de casar.

- Vovó! - Gritou Dane misturado sorriso e constrangimento.

Não sei quem ficou mais sem graça ao final da sentença da Paulina, se Dane ou eu. Apenas sorri e dei o assunto como encerrado. Estava começando a gostar da senhora, fui convidado para almoçar e aceitei. A conversa estendeu-se por horas, a chuva havia ido embora e as nuvens deram espaço para o sol do final de tarde vir se despedir e seguindo o sol fiz o mesmo. Desculpei-me com Dane quando ficamos a sós na porta, ela disse que eu não devia nada e que todos têm seus fantasmas:

- Não se preocupe Marcus, mais estranha que a sua reação no rio foi a da minha avó com você. Ainda estou sem entender, desde o desaparecimento da minha mãe não a vejo assim, foi como se a sua presença trouxesse a filha dela de volta.

- Gostei muito dela também, ela me transmitiu paz e sinto como se a conhecesse, não me pergunte de onde, apenas sinto. Se não for causar nenhum problema gostaria de voltar aqui outras vezes. - Disse.

Voltei para casa com a alma mais leve pela lembraça daquela senhora, ainda suspirando pelo ultimo olhar de Dane, por enfim ter feito algo certo e eliminado qualquer mal entendido. Abri as janelas e deixei a casa ser invadida pelo cheiro de terra molhada e pela luz rubra do fim do dia. Guardei minhas moedas, mordi uma fruta e senti uma satisfação por estar vivo que não estava comigo hoje quando acordei. 

Perdido na alegria que embala os loucos, abro o livro e sou arremessado de volta para a brutal realidade, onde a esperança não existe e os objetivos foram drenados por traições e intrigas. Folheei-o várias vezes ainda sem acreditar no que estava acontecendo, mas meu tempo com Lizandra havia chegado ao fim. Restaram apenas os fragmentos de frases nas páginas marcadas com o símbolo e nada mais.


O Livro (Lizandra's Book)Where stories live. Discover now