Capítulo 3

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Busco no passado
A razão para sorrir no futuro 

Enquanto a chuva vasculha o telhado atrás de brechas à minha procura, uma brisa com cheiro de terra molhada e tristeza antiga invade a cabana. Olho para o vazio da floresta emoldurado pela janela e penso: "Quanto tempo me resta com você Lizandra?". Poucos dias, foi o que você relatou, mas quão pouco é isso? Dois, três dias? Uma semana quem sabe? Temo descobrir isso da pior maneira possível, voltando a me tornar cego diante das suas memórias.

Nasce em mim um sentimento de urgência, a necessidade de conhecê-la mais. Bruxas sempre nos remetem a um mundo mágico, desconhecido, inacreditável e até pouco tempo atrás, impossível para mim. Contudo esse livro que tenho nas mãos é a prova que algo maior existe, não são apenas lendas ou desculpas religiosas, usadas para punir discordantes da palavra da toda poderosa igreja. Existe perdido em algum lugar um conhecimento a mais, uma doutrina, ou quem sabe um dom, que transforma indivíduos comuns em portadores da magia.

Junto com a contagem regressiva para despedida, sou inundado pela tristeza que essa história poderá conter, uma moça jovem caçada pela igreja. E aquela visão? Seria Lizandra em fuga? Fui testemunha dos seus últimos momentos? Qual o propósito disso? Loucura proveniente de uma poção misteriosa ou um pedido de ajuda perdido no tempo? Deposito o livro sobre a cadeira e me recordo do que vi quando acordei no meu berço de pó. Há algo atrás da estante.

Aumentando o número de pegadas impressas no piso de madeira sujo, vou até o móvel. Espio entre este e a parede e sinto o trepidar da chuva sobre o telhado quando minha testa encontra a casa. Pela fenda vejo nitidamente que há algo ali pendurado. Apoio uma mão na parede e a outra na lateral de madeira, e tentando não destruí-la com o movimento, arrasto-a pouco mais de um palmo. A estrutura permanece de pé, mas balança como se estivesse tomando impulso para pular.  Estabilizo sua postura e vejo o pequeno vestido assombrado por anos de solidão.

Retiro-o com cuidado de trás da estante e parece que o vento o irá desfazer, porém este só lhe da um ar de liberdade, como se sua antiga dona agora voasse livre pela casa novamente. Não estava mais sozinho enfim e por um momento imaginei Lizandra nele. A ruiva sem rosto que aos poucos preenche meus pensamentos. Um relâmpago nos atinge e com ele a revelação de um corte nas costas da peça de roupa. Viro-a, e constato o ferimento, um corte com uns três dedos de altura emoldurado por uma tintura escura, que na minha mente um dia foi vermelha. Vermelho sangue.

Se testemunhei os últimos minutos dela, esse vestido esfaqueado poderia lhe pertencer? Não tenho como recordar quão alta ela é, porém noto que esse vestido é um pouco pequeno para uma jovem mulher. Imagino que um dia foi usado por uma criança. Morava mais alguém aqui então? Minha cabeça já tem tantas duvidas sobre tudo isso que acabo esquecendo quem sou, o que faço aqui e da vida que me aguarda depois desta janela e da cortina de chuva.

Volto a sentar com o vestido morto sobre as minhas pernas: "Enfim a criança voltou para o colo de alguém.". A furiosa tempestade demonstra que vai demorar para se acalmar. Cabe a mim então, usar o tempo que me resta com Lizandra da melhor forma possível. Infelizmente posso apenas lê-la:

"Hampshire, 1673

Nasce em uma fria manhã do rigoroso inverno de 1654, Lizandra Khorn Vega, filha muito amada de Amée Khorn e Dario Hernandez Vega. A prova que o amor pode ancorar até o mais aventureiro dos marujos. Meu pai nasceu na Espanha no inicio do século XVI. Filho de pescadores, deve ter aprendido primeiro a nadar do que andar. 

Ao menos essa era a minha impressão quando eu acompanhava atenta a narração das suas aventuras marinhas. Um homem de traços marcantes, dono de um sorriso que estocava suspiros nas moças, e não tão moças assim em todos os portos onde atracava.

Não tinha amarras, vivia livre e no mar era onde gostava de estar. Destino e futuro incertos sob o comando apenas das ondas e do vento. Mas um dia, tendo o sol do amanhecer por testemunha, o seu mar mudou de lugar. De repente tudo que ele queria era mergulhar nos olhos azuis daquela moça tímida que estava sentada em uma carroça enquanto seu pai tratava dos negócios.

O olhar encantado da moça para o oceano, roubou sua alma que ele havia dado ao mar, como ele mesmo falava sempre que narrava essa história:

- Su mirada me robó el alma que pertencía a el mar.

Sempre completava a frase esboçando um sorriso de satisfação enquanto olhava para ela, deixando claro que por toda a sua vida, nunca teria como agradecer àquela ladra. Guardo esse seu sorriso como uma das mais belas declarações de amor que tive a sorte de presenciar.

Mas não foi neste dia que ele falou com a señorita. Enquanto acompanhava lentamente sua alma trocando de lugar os negócios foram concluídos e a carroça seguiu chacoalhando pela ruas repletas de mercadores do porto. Seu transe foi quebrado pelo Benites que lhe acordou com um belo tapa na cabeça enquanto gritava:

- Despierta hombre !

Ele bem que gostaria, mas quando os seus sentidos voltaram a lhe pertencer, sua visão não mais a alcançava. Passou a viajar cada vez menos, sempre em busca da alma sequestrada, aguardando o dia em que poderia ser completo novamente. O tempo passou e o condenado marujo decidiu vagar pelos mares desalmado, e assim o fez. Muitas foram as partidas e chegadas movidas por uma esperança cruel que o acompanhava, vendo refletido no azul do mar aqueles olhos, nas nuvens o seu rosto, e no coração uma ferida aberta.

O destemido homem do mar agora vivia de suspiros por uma estranha que lhe havia roubado a razão, ou quem sabe a devolvido.  Sonhava a cada desembarque com o reencontro onde a havia visto uma única vez. Muitas vezes foi enganado pela ansiedade que projetava sua amada em outras mulheres. 

Não foram poucos os "perdón" ditos para estranhas nas ruas do cais após abordagens frustradas. Até o dia em que o mar enfim ouviu suas preces."

O Livro (Lizandra's Book)Where stories live. Discover now