Capítulo 22

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A lua tão brilhante quanto furtiva
Roubou toda a luz que o sol havia me presenteado

Não recordo quanto tempo fiquei paralisado com os olhos presos nas páginas vazias do livro, não sentia vontade de levantar, havia perdido a única razão que havia encontrado para continuar. E ausente dos sentidos não vi a noite cair, trazendo consigo uma lua eufórica que teimava em iluminar minha casa, invadindo minha silenciosa escuridão por todas as frestas que encontrava. Fiz tão pouco e aprendi na mesma proporção. Puni-me por não ter dedicado mais tempo ao livro e quem sabe a essa altura não estivesse preenchido com tamanha frustração.

Entretanto, independente do meu petrificado posicionamento os dias seguirão cabendo a mim acompanhá-los ou não. 

A senhorita Kinsey me devolve um sorriso contido quando sua imagem desfila pelos meus pensamentos. Não posso dizer que estou apaixonado por ela, infelizmente não posso, acredito que com o tempo conseguirei. Suas palavras me acalmam e a beleza herdada da mãe me faz suspirar. Temo apenas que o fantasma de Anabelle, a assombração que mora no meu peito, não me permita ser o homem que ela mereça ter ao seu lado.

Começo a pensar de maneira mais pratica na situação e busco alternativas diferentes da união entre uma corda e o meu pescoço, como propôs o velho Mat quando nos conhecemos. Posso revisitar a cabana da floresta e com um golpe de sorte encontrar mais um pouco da poção dos sentidos, Dane talvez possa conseguir ler o livro, o motivo para isso é que me escapa, mas passei a acreditar em muita coisa estranha recentemente. Talvez nem tudo esteja perdido, e uma nova vontade de continuar acende em mim, imitando a chama da vela que tenho em mãos.

Decido me deitar levando comigo algumas possibilidades, poucas razões para continuar e uma infinita saudade de alguém que só vi em vulto duas vezes. Será uma longa jornada em busca do sono e talvez sequer iremos nos encontrar essa noite. Apesar da tristeza sinto que há algo de bom em mim, o desejo de continuar mesmo sendo tão pequeno é muito mais do que eu tinha quando pisei nesta vila semanas atrás. E quando minha esperança abrandou a angustia por talvez tê-la perdido para sempre, eu adormeci...

“Caminho rápido pela floresta, decidido como se tivesse um objetivo. Olhei para minhas mãos e comprovei que era o meu corpo que eu conduzia. O som dos meus passos ganha companhia esporadicamente, o vulto de Lizandra aparece e desaparece ao meu lado, caminhamos juntos e firmes na mesma direção. Meus pés me levam até o desfiladeiro da primeira visão, olho rapidamente para a direita e confirmo o lugar vendo a caverna. 

Depois de muito esforço consigo entrar através da estreita abertura, a pouca luz não me permite enxergar mais que um palmo a minha frente, sou surpreendido com o som de pedras desmoronando, bloqueado a entrada e me envolvendo na mais completa escuridão. Estou sozinho e tão logo o som de pedras rolando cessa, consigo ouvir apenas minha respiração e ao fundo, uma gota insistente mergulhando infinitas vezes em uma poça de sombras.

Fico algum tempo ali, sem saber para onde seguir até perceber nas profundezas da caverna o nascimento de um pequeno ponto de luz. Segue na minha direção, incorporando todas as partículas de poeira suspensas do desmoronamento, e aos poucos vai ganhando forma. À medida que ganha volume aproxima-se cada vez mais rápido e não tenho para onde fugir, então só me resta encarar a luz do meu destino. 

O brilho aumenta a ponto de iluminar toda a galeria de tuneis da mina abandonada. Vejo braços abertos surgindo saindo do foco de luz e em seguida um corpo coberto por um trêmulo manto. A velocidade de aproximação aumenta, cabelos vaporosos escovados pelo vento e um rosto começa a se formar. As feições de uma velha senhora que agora sorri voando na minha direção:

- Eu sabia que este dia chegaria, aguardo há anos por você!”

Acordo assustado e sentado na cama quando o espirito de luz tocou o meu rosto:

- Alberta Tolvaj. Conclui ofegante na escuridão da minha casa.

Deito esboçando um sorriso quase covarde com a certeza que essa história ainda não acabou e pensando que o amanhecer trará consigo minhas respostas, adormeço mais uma vez. A madrugada é generosa e embalou-me sem percalços até a manhã seguinte, onde o sol espalha sua calorosa esperança por toda a vila. Acordo com o coração aquecido pela esperança de voltar a encontrar Lizandra. Anoto no verso do desenho encontrado no alçapão, os fragmentos das frases e o símbolo que marca essas páginas, o mesmo que encontrei gravado na pedra do rio. Guardo a folha e traço sem demora meu trajeto até a cabana na floresta.

Impulsionado por um sonho, um punhado de expectativas e algumas lágrimas de saudade atravesso mais uma vez a janela do tempo, agora já sabendo onde pisava, buscando nos detalhes encobertos pelo tempo a sua presença, vendo estampada na poeira do chão o contorno do meu corpo e buscando criar uma nova moldura minha ali em breve. Isso se a sorte me trouxer mais um pouco de poção.

Como me recordo não havia muito onde procurar me aventurei vasculhando o conteúdo dos potes da estante e continuo sem saber do que se tratam. Procuro em vão sob a poeira da cama e através das teias de aranha que descansavam no silencio da sua sombra. Descubro que não há nada no interior da antiga panela e que o fogão a lenha não guarda, no mundo das cinzas, nenhum mistério. 

Aos poucos fui deixando minha expectativa nos objetos inspecionados substituindo-a por tristeza:

- E agora Lizandra? - Falo sozinho como se a casa pudesse me responder, enquanto olho sem entender para as frases que me restaram do seu livro.

O último fio de esperança amarra Dane a uma quase impossível, e inexplicável, capacidade de ler o livro, a última linha de uma frágil corda, mas é ela que ainda me prende a um mundo onde Lizandra pode falar comigo, rompendo a barreira do tempo através de seus escritos. Sigo então para a minha derradeira tentativa. Paro no ponto da estrada onde a perseguição de névoa me atravessou e a vi pela primeira vez. Desta vez apenas o som do vento ecoa no lugar e parece querer me empurrar para longe dali.

O Livro (Lizandra's Book)Where stories live. Discover now