Capítulo 30

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Eu prometi te guiar
E nunca deixei de cumprir uma promessa

Os gritos do Mat não deixaram claro se devemos fugir ou ir ajudá-lo, sua voz corre para longe do armazém e traçamos nosso caminho em sua direção. Na minha mente a imagem dos irmãos Faucheux atacando Mat cria um cenário devastador e imperdoável, mas não há sinais de luta e à medida que avançamos correndo até o armazém, nossos medos se convertem em sentimentos bem diferentes, tão logo avistamos Mat trazendo apoiada no seu corpo uma mulher. Meu medo virou dúvida e o da senhorita Dane, lágrimas. Lágrimas de alegria:

- Mãe? – Exclama a moça eufórica enquanto ajuda a moribunda a sentar-se.

- Meu deus, o que fizeram com você? – Pergunta Mat acariciando o rosto daquela mulher que não estava mentalmente ali.

Dane chora ajoelhada ao lado de sua mãe, acariciando seus trapos e tentando trazer a sua consciência de volta. Parecia estar vestindo a mesma roupa de quando partiu. Fragmentos de tecido encardidos pelo tempo, cobertos por um manto tão sujo quanto. Olha para Mat e para Dane como se os reconhecesse, mas não fala nada. Até que ela me vê. Levanta-se e vem em minha direção, cambaleando enquanto vasculha o bolso com mãos tremulas:

- Marcus, guarde isso com você. –Diz entregando-me um pequeno frasco e desmaiando nos braços de Mat que a cercavam cuidadosos durante o breve caminhar.

- Como ela sabe o meu nome? – Penso em voz alta compartilhando minha surpresa com os demais, enquanto Mat e Dane levavam-na para dentro da casa.

Fico parado sozinho no armazém enquanto a família, agora completa, se afasta. Não encontro explicação para o que acabo de presenciar e olho para o pequeno frasco repleto de dúvidas. Guardo-o comigo e rompendo meu transe vou em busca de respostas no interior da casa. Encontro a mãe de Dane deitada enquanto a filha retira seus trapos do corpo e se prepara para lhe dar um banho, escrutinando cada parte da pele nua que se revela ao despi-la.

Mat, completamente atordoado com a situação, olha a cena perplexo à porta e a fecha quando se fez necessário. Conversamos um pouco perdidos em um mar de perguntas sem resposta, de uma alegria medrosa, cheia de expectativas angustiantes sobre o que iria acontecer depois.

O ritual do banho foi concluído e com a ajuda do pai. Lally Aurora Kinsey voltou a se vestir como gente e mesmo tão magra e por anos perdida sabe-se lá aonde, mostra de quem Dane havia herdado a beleza. Enquanto afagam a pele castigada da mulher adormecida eu lentamente me ausento. Volto para minha cama tentando organizar novamente os pensamentos. Agora, acompanhado por um pequeno frasco de conteúdo tão misterioso quanto tudo que aconteceu no dia de hoje, voltei a ler. Tenho a esperança de encontrar todas as respostas aqui:

"Meses se passaram e a guarda montada que observava cada movimento da minha família não dava sinais de que iria se dispersar. A história da minha suposta morte me foi revelada e guardo o vestido até hoje aqui comigo. Passei a encontrar meus pais em incursões que ocorriam ocultas pelas névoas das madrugadas frias. E nos esquecíamos dos problemas enquanto ficávamos juntos, ansiando pelo retorno de uma vida sem perseguição. Dário estava disposto a construir uma pequena cabana longe da vista de todos para mim. A caverna, apesar de ser um excelente lugar para se esconder, não compartilhava da mesma salubridade.

Assim ele e Benittes, seu grande amigo de tantos anos e incontáveis viagens, dedicavam seu tempo de falsas caçadas para erguer uma cabana encravada na floresta e protegida de olhos curiosos. E foi em uma dessas travessias que os caminhos do meu pai e do inquisidor se cruzaram mais uma vez. Dário ouviu os gritos de uma mulher e os perseguiu pela mata. Encontrou-a e, em seus olhos, era sua filha sendo violentada pelo santíssimo senhor inquisidor Laurentius. Cego pelo ódio e buscando a confirmação da identidade da moça, lançou-se sobre o inquisidor.

Desferiu-lhe um soco guardado há meses, tão logo o homem que ainda tentava entender o que estava acontecendo se virou. Desabou tonto do lado da moça de olhos arregalados e chorosos, que protegia o corpo parcialmente nu usando os braços:

- Corre! – Alertou Dário enquanto se preparava para a investida do inquisidor que sacudia a cabeça tentando realinhar as ideias.

Laurentius fitou a espada em seu cavalo a poucos passos, mas seu olhar, bem como a disparada no intuito de alcançar a arma, foram interceptados por Dário, que atirou-se contra ele. No impacto dos corpos, o inquisidor foi impulsionado em direção a uma pequena ladeira e tentava sem sucesso retomar o equilíbrio enquanto descia de costas. Seus braços se agitavam no ar e depois de alguns passos passaram a não fazer mais sentido. Dário observava a descida que parecia estar sendo guiada por um corredor de pessoas que o empurravam para trás.

A moça fugiu levando seu pranto e os farrapos em que seu vestido havia se transformado e o inquisidor caía de costas tão logo a pequena descida terminou. Dário vendo que a moça estava segura partiu para continuar a luta, tinha mais alguns golpes guardados para este encontro. Mas descobriu que eles não seriam mais necessários. 

Laurentius agonizava com um galho de arvore atravessado na garganta, tossia sangue que agora inundava os seus pulmões, lavando o seu rosto e colocando uma película vermelha sobre seus olhos arregalados que clamavam por ajuda.

Seus braços buscavam em vão algo para se apoiar e o aliviar daquela agonia, mas a cada tentativa de levantar uma parte maior do galho nascia a sua frente, mostrando seu sangue pingando e rasgando seu pescoço ainda mais.

E quando suas forças o abandonaram e do mundo vermelho por seu sangue se despedia, pode ver o que havia acontecido. Dezenas de mulher exalando fumaça formavam um corredor, que nascia na parte alta da pequena colina e se estendia até o tronco de árvore onde estava. Foram elas que o conduziram até ali, puxando-o passo a passo, desequilibrando-o e por fim deixando-o repousar sobre seu leito de morte.

No meio deste corredor, formado por todas as suas vitimas ao longo da sua impiedosa vida, estava Alberta Tolvaj, que sorria para ele enquanto segurava, em uma das mãos, uma corrente de vapor igual a que ele um dia havia posto nela. No momento que seus olhos se fechavam no mundo real e eram acompanhados de perto por Dário, a senhora da floresta lançava sobre ele a sua corrente e trazia aprisionada a alma do inquisidor, puxando-a do corpo no mesmo instante em que ele agonizava pela ultima vez preso ao tronco.

- Eu não falei que voltava para lhe buscar Laurentius? Nunca deixo de cumprir uma promessa. – Falou Alberta no mundo dos mortos, enquanto arrastava seu novo prisioneiro, escoltado por dezenas de fumegantes mulheres que um dia ele executou."

O Livro (Lizandra's Book)حيث تعيش القصص. اكتشف الآن