Traidor

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    03h27 da madrugada
(Local desconhecido)
27 de março

       Estava suada e chorando, encolhida na enorme cama, abraçada à um travesseiro. Justamente naquele momento, minhas piores memórias resolveram aparecer para me assombrar, me deixando novamente acordada na escuridão da noite.
      Mais uma madrugada cheia de brigas, com gritos ecoando pela casa enorme. A fúria do homem invadindo cada cantinho da minha cabeça, eu usava o travesseiro para abafar os sons, mesmo que aquilo fosse inútil. Estava farta das brigas, daquela casa, do meu auto-confinamento. Peguei um casaco, calcei meus tênis e saí de casa, querendo apenas um descanso. Corri atravessando a rua, quando ouvi uma voz e parei no meio-fio, avistando um corpinho minúsculo e desengonsado de capuz vermelho.
        - Skie! - Ele chamou de novo enquanto corria.
       Ao longe pela direita vinha um carro velozmente. Mattew estava quase atravessando a rua e o carro muito próximo.
       - Mattew, fica aí! - Gritei, num piscar de olhos, o carro freou, fazendo barulho e manchando o asfalto, por centímetros ele quase acertou meu irmão.
       O motorista saiu do carro xingando uma série de palavrões, reclamando sem parar. Mesmo querendo retribuir os xingamentos, eu lhe dei "boa noite" e agradeci por ele não ter atropelado meu irmão de apenas 3 anos de idade. O sujeito xingou ainda mais e entrou no seu carro, atravessei e peguei Mattew no colo lhe dando um sermão.
       - Você não devia ter me seguido, Matt. É perigoso sair de casa à noite. - Eu disse.

      - Poquê voxê xaiu, Skie? Eu penxei que tava indo embola... - Ele fez cara de choro, aquele bebezão.
 

     Lembro de ter sorrido, de dizer que eu "nunca iria embora", eu jamais teria coragem para ir sozinha para o mundo que existia além do horizonte.
        Era o que eu pensava, bom as pessoas mudam. O abraço do travesseiro era macio, porém sem vida. Eu só queria meu irmão de volta, ter uma vida normal como uma pessoa normal. Sem aquilo tudo que estava acontecendo. Ouvi alguém estralar a língua, surgindo na escuridão. Miguel balançava a cabeça, como que não acreditando no que via.
        - Essa não parece nem um pouco com a garota que eu vi à algumas horas atrás. - Ele vislumbrou a lua pela janela aberta, o vento soprou forte. - A garota que eu conheci é durona, corajosa... - Ele deixou a frase morrer, me olhando fixamente.
       Sorri enxugando as lágrimas insistentes que não sabiam ficar na delas. Ele se aproximou, enxugando minha bochecha esquerda.
       - Você me lembra ela... - Ele desviou o olhar, recolhendo a mão.
      - Todo mundo chora. - Falei, para minha própria surpresa.
      - Eu sou um vampiro, um ser das trevas. - Ele disse em pé, de costas para mim. Eu achava incrível como eu ainda conseguia me admirar da velocidade deles.
      - Vampiros fazem parte do mundo. - Concluí.
      Ele sorriu. Miguel tinha o sorriso tão bonito, mesmo que suas presas me amedrontassem um pouco. Ele voltou a me encarar, seu rosto sereno, os olhos castanhos tão leves, seu cheiro de sândalo me tranquilizando.
       - Destemida e inteligente... Duas qualidades que eu admiro. - Ele era tão gentil, tão calmo... Nem parecia o monstro cruel que eu havia visto por tantas vezes nos pesadelos.
       Me levantei, para olhar o céu estrelado e cheio de neblina.
       - Tenho tantos medos, Miguel... - Confessei.
       Ele se aproximou, ficando à poucos centímetros de mim. O vento soprava, o frio me cercou.
       - Quero que veja uma coisa. - Ele disse.
       - O quê? - Na real, eu não tava mesmo afim de sair do quarto, não queria encontrar Kaden em um passeio pelo palácio dele.
       Acabei aceitando o convite, mesmo que eu estivesse um tanto assustada em ter que me atrever a andar nas escadarias daquele maldito palácio. Tive que parar para tirar aquele salto do meu pé, eu quase chorei de emoção em me libertar daquelas coisinhas torturadoras de pés indefesos. Miguel apenas me observava, sério. Tudo naquele lugar era ricamente decorado e bem limpo. Chegava a parecer até obcessão por limpeza. O piso de mármore não apresentava uma sujeirinha sequer. Arremessei o salto pela primeira janela que avistei e segurei as barras daquele vestido idiota que estava me tirando a paciência fazia tempo.
       Chegamos em um lugar decorado de espelhos iguais ao do "meu" quarto. Havia apenas meu reflexo ali, mas eu podia sentir Miguel atrás de mim e estava. Ele curvou a cabeça, parecendo um tanto triste. Eu já não reconhecia o vampiro cheio de ódio, mas via apenas um homem que lutava para superar sua perda.
      - Eu não tenho mais alma, por isso, não há o que refletir. - Ele afirmou.
      Ele apontou para cima, então vi, centenas de estrelas brilhando no céu negro. Ali não havia nuvens.
      - Está vendo aquelas estrelas? Duas grandes separadas por três menores no meio e uma outra ali mais em baixo à direita e mais em cima à esquerda. - Apontei no céu para que ele visse. - Quando eu era pequena, eu sempre achava que a grandona da direita era minha e me representava. As menores do meio eram a minha família e a da esquerda era alguém que eu estava destinada a conhecer...
      Abaixei o braço, satisfeita com uma boa recordação de infância.
       - Por quê deixou de acreditar nisso? - Ele perguntou, sério. Me dei conta que eu nunca havia dito aquela bobagem minha a ninguém.
       Dei de ombros. Depois de ver tantas brigas, meu "pai" trair minha mãe, espancá-la e tentar fazer o mesmo comigo e meu irmão, mudei minha perspectiva sobre família.
       - Não fazia mais sentido. E eu nem tenho família mais... Tecnicamente, aquelas estrelas deviam estar mortas assim como minha família está para mim. - Murmurei, mantendo o bom-humor.
      - No dia que alguém morrer de verdade, uma dessas luzes se apagará e uma parte do universo se destruirá. Acredite em mim, somos eternos. De alguma forma, só estamos num teste, a morte define game over ou you louse.
       - É assim que você mente pra si próprio, Miguel?! - Cadriel apareceu, estava zangado, visivelmente.
      - Não quero discutir com você agora, Cadriel! - Miguel disse, tentando acalmar o irmão.
      - Eu avisei pra ficar longe dela! - Ele pegou o irmão pelo colarinho com sangue nos olhos. - Por que não conta como Francielle morreu?! Porque não diz como traiu o próprio irmão?!
        Cadriel lançou o irmão em um dos espelhos, quebrando-o. Com velocidade sobre-humana, ele alcançou Miguel, levantando-o sem o menor esforço. Miguel reagiu, lhe dando um soco no queixo, fazendo-o atingir outro espelho.
        - Você quer me julgar, Cadriel?! Então, vamos confessar as coisas agora. Confesse que naquele dia no ônibus, você só estava lá para matá-la! Confesse que você estava esperando o momento para acabar com a vida dela! Confesse, Cadriel! Confesse a ela que amanhã vão matá-la, porque ela é um perigo para nós, porque é imune ao nosso veneno! Você quer me julgar, mas não percebe os seus erros! - Miguel vociferou, se transformando em centenas de morcegos.
        Eu estava com raiva. Não podia acreditar naquilo tudo. Cadriel queria me matar! O tempo todo! Ah como eu queria dar uns socos na cara dele.
        - Skyla, é verdade que... - Eu o interrompi.
        - Cala a boca! Você me salvou do prédio apenas para me trazer pra ser sacrifício! Não quero ouvir uma palavra sua sequer. - Dei-lhe as costas, indo para sei lá onde. Só queria sumir da frente dele, não suportava olhar seus olhos perfeitinhos.
       - Skyla, por favor... Só escute... - Ele pediu gentilmente e isso me impediu de prosseguir.
       Droga de sentimentos idiotas! Virei estátua, esperando que ele me desse um bom motivo para aquilo, esperando na verdade, que ele me dissesse que não era verdade, que ele jamais pensou em me matar, que ele não era um assassino psicopata sem coração.
       - Depois que Miguel quase morreu na tentativa de infectar você, meu pai me enviou para acabar com a sua vida. E eu ia fazer isso, mas não consegui... - Ele explicou calmamente, será que ele ainda não tinha percebido que pisou na bola feio?
       Suas palavras só aumentaram minha raiva. Me virei, me aproximando dele com passadas largas como um soldado. O encarei com sangue nos olhos.
        - Não conseguiu?! - Rasguei uma manga do vestido, jogando-a fora, revelando minha pele alva, limpa e alguns arranhões no braço que não tinham sarado ainda. - Eu estou bem aqui, pode me morder agora! - Ofereci meu pescoço afastando meu cabelo para o outro lado, permitindo uma visão completa do meu ombro exposto.
        Ele inspirou, veias negras surgiram em seu rosto outrora perfeito. Ele parecia incomodado, perturbado. Cadriel virou, negando. Ele não queria fazer aquilo. Isso quase me amoleceu, porém eu não estava lá para romance, por mais que eu quisesse muito ceder e esquecer tudo.
       - Você não passa de um traidor, mentiroso e covarde! - Gritei.
       O céu se enegreceu, trovões estalaram alto. Relâmpagos iluminavam o lugar. Uma coruja sobrevoou o palácio com seu cântico perdido e assustador a invadir o espaço acima de nós. Cadriel me pegou, me enforcando na parede, seus olhos azuis a reluzir, os dentes afiados. Senti medo, aquele não era mais o Cadriel de poucos segundos atrás.
       - Não sou traidor! - Sua voz grossa e meio rouca revelava rancor e angústia.
       Empurrei-o, mesmo que ele mal tenha se movido do lugar.
        - Eu odeio você! - Devolvi.
        Ele não demonstrou sentimento algum, estava frio demais para demonstrar alguma coisa. Aproveitei enquanto ele parou e fugi, descendo as escadas feito uma louca. Corri apressada, chegando em um corredor onde havia um quarto, eu podia ouvir os morcegos e sabia que ele estava próximo. Abri a porta me lançando em um abismo negro, comecei a cair. Ali não era um quarto, atrás da porta tinha um abismo que não se podia ver o fundo. Gritei de pavor, em uma outra queda, mas desta vez, nada proposital. Quando vi a nuvem escura de morcegos aparecer, fechei os olhos. Senti-me amparada, segura e envolvida por algo que não podia ver no momento.
      Num abrir de olhos, Cadriel fecha a porta e me imprensa contra ela. Seus olhos desumanos brilhavam, as veias negras surgiam poluindo aquele belo rosto. Ele estava perigoso, assustador. Eu tremia e suspirava de pavor.
       - Diga de novo que me odeia! Diga! - Ele vociferou.
       Cadriel se afastou num vulto, se transformando novamente nas aves noturnas, indo para longe, sumindo no enorme palácio. Caí de joelhos no chão, me firmando para não cair de vez com a cara no chão absurdamente polido. Me obriguei a levantar e procurar meu quarto, de repente tão distante e eu estava perdida.
        Completamente perdida em um amontoado de ouro, riqueza e poder que havia lá dentro.
         Eu quero ir pra casa, isso aqui não dá pra mim... Suspirei ofegante e parti para minha busca.

A PassageiraDär berättelser lever. Upptäck nu