O que é real?

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05h40 da madrugada
Apartamento em Semytiville
22 de março

Acordei desesperada, gritando sem parar, minha garganta estava seca. Comecei a tossir e fui para o banheiro em passos trôpegos. O sangue que eu cuspia manchava a pia, a tosse aumentava cada vez mais, me sufocando, meus olhos ardiam, lacrimejando.
Depois de um bom tempo, consegui parar. Lavei minha boca e a pia, sem muitas forças para ficar de pé, acabei me sentando no vaso. Passei a mão direita pelo pescoço e senti uma cicatriz, que não estava lá antes.
Levantei depressa e olhei no espelho, haviam marcas de dentes no meu pescoço. No espaço das presas, a cicatriz era profunda. Quando isso aconteceu?! Era bizarro ter uma cicatriz que eu não lembrava como havia sido feita. Pior... Por quem?
Enquanto as perguntas rondavam minha mente, decidi que era mais importante ir para o trabalho. Entrei debaixo do chuveiro com a água quente tocando minhas costas, de vez em quando, minha mão alcançava a cicatriz e se prendia a ela, sentindo cada furinho provocado por dentes, quando minha cabeça começou a doer e flashs de memórias fragmentadas passavam pela minha mente atordoada. Precisei me segurar nas paredes para me manter de pé. Eu lembrava de um beco, havia... Um homem, pálido, alto e magro, os olhos azuis que já não me pareciam tão assombrosos, ele também estava presente nos meus sonhos-pesadelo. Lembro da dor, da queimação no pescoço, enquanto eu corria trôpega e tonta demais. Lembro dos gritos perturbados e assustadores daquele homem pálido, branco feito giz.
Mesmo com minha cabeça à mil, doendo muito numa enxaqueca insuportável, me obriguei a me vestir e ir para o trabalho.
Após passar pela cobradora-demônio (meu novo apelido para ela), me sentei na minha cadeira de costume. Dei uma rápida olhada para trás, apenas para encontrar ele com seus lindos olhos verdes. Seu olhar era sempre o mesmo, misteriosamente cruel.
Senti minha mente vagar, para longe. Eu estava fraca, mal conseguia ver as pessoas sem que minha visão ficasse torta, embaçada, repetida.
Consegui puxar a corda e desci, sem saber se conseguiria mesmo voltar sozinha.
Eu mal via para onde estava indo. Senti gotas grossas de chuva tocarem em mim. Minhas pernas estavam cansadas, pareciam recusar-se a caminhar. Ouvi passos pesados sobre uma possível poça de lama. Meu estômago se encolheu, meus pelos eriçaram-se. Me virei para olhá-lo, por algum motivo, eu sabia que era ele. Um vulto negro ao meu redor, se transformando em homem. Deja vu.
      De pé, alto como poucos, olhos verdes como água, moreno bronzeado, forte como um lutador, consegui enxergar gominhos por baixo da camiseta, um olhar intimidador, um homem que parecia ter sido esculpido por deuses. Ele caminhou em minha direção, com ódio. Sua pele estava molhada e fria, fios castanhos se desprendiam de sua cabeça, caindo sobre seus olhos, seus lábios sedentos encostaram em minha pele, eu não tinha como fugir, seu nariz encostou no meu pescoço, ele inspirou profundamente, sentindo meu cheiro. Uma mão desceu pela minha cintura, segurando-me com força. Estava atenta e assustada.
       - Você é minha. - Ele disse.
       O ar gélido tocou meu pescoço, senti medo, queria fugir daquele homem e ao mesmo tempo ser sua. Estava dividida. Quando senti dentes afiados cravarem em minha pele, vi o sangue descendo lentamente, manchando a roupa que eu vestia. Uma dor que queima, arde, comecei a me debater, tentar afastá-lo, mas era inútil, meus esforços eram inúteis. Ele prendeu minhas mãos na parede com as suas e destribuiu lentos beijos que vinham descendo pelo meu pescoço... Aquilo estava acontecendo, não era apenas sonho. Meu pesadelo se tornou realidade! Eu estava trêmula, sua presença me amedrontava, como poucas coisas no mundo.
       Em meio ao meu desespero, ele parou, ergueu seu rosto outrora belo, agora repleto de veias negras que ameaçavam abrir-se, inchadas e volumosas. Seus olhos estavam nigérrimos por completo. Meu coração pulava, devido ao medo. A mão dele segurou meu pescoço, me enforcando na parede, meus pés estavam no ar. Eu estava sem ar, tentava inutilmente afastar sua mão do meu pescoço. Eu buscava escalar a parede com os pés calçados, arranhando a tinta macabra.
       Ele me tirou de perto da parede, me lançando para longe. Caí sobre o chão, com arranhões nos braços e a calça rasgada na coxa, por causa do asfalto. Me levantei aos poucos, me sentindo estranhamente melhor, como se eu não tivesse acabado de ser arremessada à poucos segundos.
       Aquele homem misterioso e assustador caiu de joelhos sobre o chão, as veias escuras sumindo. Seu rosto voltou ao de antes, mas ele parecia fraco e imponente. Vi quando ele caiu com seu rosto sobre o chão. Aproveitei para fugir correndo o mais rápido que eu podia, quando alcancei uma distância considerável, algo me fez parar, algo me fez virar uma estátua. Não posso deixá-lo. Eu estava louca, estava mesmo. Me virei para trás, vendo aquele homem tão grande e intimidador, parecendo tão pequeno e frágil. Comecei a voltar, em passos lentos e hesitantes. Ele estava imóvel sobre o chão, completamente molhado e frio, por causa da chuva. Me aproximei do seu corpo, virando- o para mim, tentando colocá-lo sentado ao menos. Mas, ele pesava muito. Ele abriu os olhos verdes, me fitando. Recolhi as mãos.
       - Saia - Ele murmurou.
       - Me ajude a colocar você em pé - eu disse, ignorando o que ele dizia.
        - Saia daqui - Ele repetiu, parecia estar se recuperando do que quer que tenha acabado de acontecer.
         - Cala a boca e fica de pé - ordenei, embora ele mal tenha me ouvido. - Estou ajudando um estranho que tentou me matar, muito inteligente da minha parte! - Murmurei enquanto lutava para levantá-lo. - Acho que vou começar a andar com uma faixa na testa dizendo "suicida passando".
       Ao colocá-lo de pé, ele endireitou-se, maior que eu, forte e assustadoramente recuperado sem um único arranhão. Seu corpo frio estava tão próximo ao meu, seus olhos distantes guardavam uma certa amargura.
       - Não devia ter ficado aqui. - Ele diz, quando as luzes fracas dos postes oscilaram e ele sumiu. Simplesmente desapareceu.
       Ri de mim mesma. Eu sou tão idiota! Virei, seguindo para minha casa. Tudo aquilo que eu havia acabado de viver era absurdo. Era como se eu estivesse dormindo o tempo todo. Desde a primeira vez que vi aquele homem desconhecido, perdi a noção do que era real.  O que é real? Eu já não sabia se estava acordada. Comecei a pensar que talvez eu estivesse dormindo, em coma em algum lugar, sonhando com um cara que nem existe. Quem sabe? Era absurdo demais para ser verdade. Mas, acho que não sou a pessoa certa para falar sobre verdade e realidade. Prefiro viver minhas insanidades, dar uma passada no psiquiatra só para garantir e me internar no primeiro manicômio que eu achar, depois de bater o record de comidas que só eu como.
     

      

A PassageiraWhere stories live. Discover now