Para onde for

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00:03 da madrugada
Apartamento em Semytiville
20 de março

A luz da lua no céu entra no quarto. Mal preguei os olhos e já estava acordada. Sabia que não dormiria mais, meus sonhos com aquele homem que eu nem sabia o nome, estavam mexendo muito comigo. Eu queria encontrá-lo, queria conversar de verdade com ele, perguntar por que seus olhos eram tão diferentes na escuridão. Eu não sabia por que estava pensando em um desconhecido, mas queria saber quem era o tal desconhecido. Minha garganta ardia, comecei a tossir sem parar, até chegar no banheiro, tossi muito e vi na pia, manchas de sangue escorrendo. O que é isso? Liguei a torneira, lavando a pia e enchendo minha boca com água, cuspindo a água fora, logo após. Não havia mais nada, a água estava limpa, como se eu nunca tivesse tossido sangue. Me olhei no espelho, dando de cara com o rosto lindo e perfeito daquele homem, distante na porta. Me virei, não havia nada. Absolutamente nada. Suspirei, estava vendo coisas. Estava faminta, abri a geladeira, buscando um saco com batatas para cortar e fritar.
Fiz tudo bem rápido, aproveitando para fazer uma calda de chocolate. O fogão empoeirado me incomodava, mas cuidei com a minha comida, decidi que limparia tudo depois.
Levei o prato com batatas e a vasilha com a calda para o sofá. Escolhi um filme bem longo. Hum... O Hobbit... Coloquei o segundo, que eu nunca havia terminhado de assistir.
Por algum motivo, eu estava inspirada para cozinhar, mas principalmente para comer. Como havia acabado, fui inventar alguma coisa louca para comer.
Fiquei encarando a geladeira aberta por um bom tempo e comecei a pegar algumas coisas pra salada, outras para a feijoada, outras para um arroz de forno e outras para uns bifes bem temperados, assados na panela. Quando olhei as horas, fiquei até surpresa que o tempo havia passado tão depressa. Tudo estava pronto e cheirava mais do que bem.
Me sentei à mesa cheia de apetite e comecei a comer tudo o que havia feito. Estava orgulhosa por aquele meu progresso, mas ainda não estava satisfeita. Meu apartamento estava um nojo.
Depois de lavar a louça, fui organizar a "casa". O sol já nascia enquanto eu jogava o lixo de meses fora. Entrei no meu apartamento cheia de orgulho, com um sorriso de orelha a orelha.
Me olhei no espelho do meu quarto, meu cabelo num cóque mal feito e despentiado, olheiras enormes, minha pele pálida, minhas pintas quase sumiam. Ai, que droga! Soltei meu cabelo, tirando as roupas, pronta para um banho merecido depois de deixar a casa brilhando.
A água estava fria, mas era bom, reconfortante e consolador. Deixei a água levar tudo de podre em mim, minhas mágoas, minhas fraquezas, minhas raivas, meus rancores... Queria me livrar de tudo isso, me sentir limpa e purificada de alguma forma.
Pentiei meu cabelo mal tratado e me maquiei, para esconder as olheiras, escolhi um vestido florido que não tinha nada haver comigo e sapatilhas rosa que também não tinham nada haver comigo. Nem eu sabia por que estava me arrumando diferente do meu estilo, mas me senti mais viva, mais alegre, senti minha vida ganhar cor.
Eu não tinha que ir trabalhar, era final de semana, decidi passear pela nova Semytiville ensolarada.
As ruas estavam vazias e eu não me importava. Parecia uma adolescentezinha boba e sorridente.
Eu não estava com fome, nem cansada. Cheguei em uma praça, que eu nem sabia que tinha lá. Me sentei em uma namoradeira, me afundando na madeira rígida, tirei as sapatilhas para sentir a grama verde sob meus pés.
- Você está diferente hoje. - Aquela voz... Os olhos verdes intensos, tão lindos.
Me arrepiei no instante, sentindo um nó no estômago. Ele estava lá, eu podia vê-lo de perto, sem parecer tão ameaçador e perigoso. Ele chegava a parecer até... Angelical, com sua beleza.
- Você... - As palavras me engasgavam, minha boca ardia, a sensação de perigo retornando. Eu queria muito mais poder admirá-lo, poder tocar em sua pele.
Ele esticou o braço, alcançando meu cabelo, eu mal podia desviar os olhos dos seus, ele soltou meu cabelo que caiu com suas ondas irregulares e longo.
- Fica mais linda assim. - Ele afirma, por um momento, desvio meus olhos, para colocar uma mecha para atrás da orelha.
Eu busco seus olhos novamente, mas tudo o que tenho é o pôr-do-sol, pois o homem que eu nem sabia o nome já havia sumido.
Me levantei do banco, procurando por todos os lados, examinando cada possível esconderijo, mas não havia nada. Apenas eu e o pôr-do-sol.
Cabisbaixa, caminhei sobre a grama, descalça. Me calcei e fui para minha "casa".
Chegando lá, eu quis encontrar a felicidade, pelo menos o orgulho de limpar tudo, mas tudo havia acabado.
- Algumas coisas deveriam ficar para sempre, não deveriam ser passageiras... - Falei para o eco do meu quarto.
Me enrolei na cama, fechando os olhos com força.

Como água, claros olhos verdes. Como bronze, sua pele refletia. Como um anjo guerreiro, forte e perfeito. Parecia errado que ele estivesse tão longe. Ele estava com a camisa suja e rasgada, o cabelo despentiado e molhado, chovia muito, com trovões e relâmpagos ameaçadores. Ele deu alguns passos, parou para me encarar com seu rosto sério e me estendeu a mão.
- Vem comigo - ele convidou.
Eu olhei sua mão, olhei o horizonte inalcançável e sustentei meu olhar no seu.
- Para onde for - respondi, aceitando sua mão.
Ele me tomou nos braços fortes, musculosos. Quanto mais perto eu estava, eu podia sentir sua pele fria em contato com a minha. Aos poucos, seus lábios se aproximaram dos meus, deixando meu desejo aumentar. Eu me sufocava entre seus lábios, querendo ar, mas querendo mais ainda ele para mim.
Num desejo grande e avassalador, eu senti um coração morto voltando a vida.

Abri os olhos, eu nem havia dormido por mais de cinco minutos. Rolei pela cama, procurando sono. Fechei meus olhos novamente e os abri, dando de cara com aquele homem que não saía da minha cabeça. Pisquei de novo, ele não estava mais lá. Dei um pulo da cama, não havia ninguém, não há.
Me pus em pé, estava cansada daquilo tudo. Ele simplesmente aparecia e sumia da minha vida quando bem entendia. Eu corria o risco de estar completamente louca, mas precisava arriscar. Se eu estava louca, tudo indicaria o pior. Se eu ainda estava sã, então estava prestes a entrar numa furada daquelas.

A PassageiraOnde as histórias ganham vida. Descobre agora