Deserto

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07h48 da manhã
Apartamento em Semytiville
24 de março

" Nunca mais faça isso, Grier..." Eram as únicas palavras de que eu lembrava. Já era tarde, eu não ia mais para o trabalho, felizmente. Me levantei aos poucos, com uma estranha sensação de que havia algo errado. Arrumei a roupa de cama e segui para a cozinha, eu necessitava de sorvete. Todo mundo deveria tomar sorvete depois de tentar se matar se jogando de um prédio de 15 andares. Estava tudo tão calmo... Os vizinhos nem faziam barulho, o sol ainda estava escondido, o vento se recusava a passar. Liguei a tv, nenhum canal prestava. Desistindo de tentar assistir um jornal, coisa que eu não fazia, desliguei e voltei para a cozinha. Havia um estranho envelope em cima da bancada, que eu não lembrava de ter colocado ali. Uma dor de cabeça começou, senti-me sendo arrancada do lugar onde estava, minha visão se abriu e eu lembrei de imediato. Este envelope estava com a Jade naquele dia. Coloquei o pote de sorvete na mesa e peguei o envelope, abrindo-o. Haviam fotos, todas datadas. Eram... Do Mattew. Ele com os amigos, em diferentes lugares, a maioria em festas. Mas, havia uma foto diferente de todas as outras, ele estava com uma garota, morena, o cabelo meio bagunçado, era uma garota bonita, bem mais bonita que o Mattew, muita areia para o caminhãozinho dele. Eles estavam abraçados e ele beijava seu rosto, enquanto ela fazia careta. Tinha algo de especial nela, eu podia sentir que ele gostava muito daquela garota. Virei a foto, encontrando uma pequena frase escrita, aquele garrancho me lembrava as primeiras letras do Matt. "Bella Antunes, maluquinha."
Abri o envelope que ainda continha uma foto e um pen drive. Não era uma foto do Mattew, era da garota. O mesmo cabelo bagunçado, o mesmo rosto, porém agora sério, os olhos focados na câmera. Virei a foto, havia uma espécie de poema:

"Me desculpem, mas pra mim vocês não sabem o que é amar de verdade, vocês estão com tanto medo de ficar só que na primeira que aparece já fala que ama, eu sinto muito, mas são pessoas como vocês que acabam sem ninguém na vida.
Bem-Vindos à realidade."

Eu não fazia idéia que Mattew curtia esse tipo de texto, mas gostei de saber que ele pensava assim. Talvez ele não tenha se tornado um galinha, afinal. Aquela garota... Guardei as fotos no envelope e voltei para a sala com o pen drive e meu pote. Havia um vídeo no pen drive que logo apertei o play para começar. Uma festa, barulho de muitas pessoas, adolescentes por todo o lado. Vi Mattew com os amigos, rindo e conversando, à medida que a câmera se aproximava deles.
- Aí, gente! Esse filho da mãe, escondeu da gente o aniversário dele, mas eu descobri!!! - Uma voz masculina disse.
Mattew recebeu uns tapas e logo todos ao seu redor começaram a bater palmas, cantando parabéns, em uníssono. Algumas garotas o abraçaram e depois o cara que estava com a câmera virou-a para ele.
- Fala X!!! - O garoto disse, sorrindo.
- Sai dessa, David. Eu sei que você tá filmando. - Mattew lhe empurrou, nada gentil.
A câmera balançou, desfocada. Todos comemorando e bebendo, rindo como loucos.
- Mattew! Olha a Bella ali! - O garoto, David falou, focando na garota sentada bebendo, mal-humorada.
Um apagão, de repente. A tv desligou. Só havia a pouca luz do sol pela janela. Dei um pulo do sofá e fui para o banheiro, também não havia água. Corri para o quarto e procurei uma roupa qualquer, acabei vestindo um jeans rasgado e uma camiseta e uma jaqueta escura. Eu pressentia perigo, pressentia que mais um dos meus sonhos se tornariam realidade, mas dessa vez não era com Miguel que eu me encontraria e sim com... O homem velho. Desci pela escada, já que o elevador não funcionava. Era como se o tempo tivesse parado. Quando cheguei do lado de fora, Dejá vú! Como um soco na cara.

Um deserto, a cidade estava deserta, todos haviam sumido. Eu caminhei, para algum lugar que nem eu sabia onde ficava. Parte de mim me dizia que estava indo de encontro com a morte, mas eu não tinha como evitar, embora meu coração desse fortes pulos, ameaçando rasgar meu peito para os dois lados e eu também sabia por que ele estava assim. Eu sabia que ele estava lá, podia sentir isso.
Ouvi um barulho estranho, como morcegos, um monte deles. E era exatamente isso que me esperava, me virei, vi um monte deles, com um barulho horrível, voando por todos os lados. Tampei os ouvidos com as mãos, os animais estavam quase me arrastando, mas acabaram por me derrubar no chão. Vi todos eles se transformarem em pessoas, ou pelo menos, pareciam pessoas. Um deles, de cabelo grisalho, olhos azuis brilhantes, vestido de preto, a pele pálida, os lábios num vermelho escarlate, pude ver seus dentes, afiados nas presas, bem como os dentes de um vampiro.
- Então, é essa a humana? A tal mortal? - Ele aponta para mim com um olhar desprezível.
- Sim, é esta a humana. - Um deles diz, aquele que eu me lembrava muito bem, naquela noite enquanto eu esperava o ônibus. O sujeito ergueu o nariz no ar, inspirando profundamente com um sorriso sádico.
Então, posso vê-lo. O homem dos meus sonhos, que sempre me protegia, sério. Ele não me olha, parece fingir não me conhecer, está a direita do homem de cabelo grisalho. Seus olhos estam azuis, inexpressíveis, frios como vidro. Na verdade, seus olhos são como vidro, refletem a mim, mesmo que ele não esteja olhando para mim.
- Peguem a humana. - O homem mais velho diz, dando as costas.
Então, tudo o que posso ver, são vários deles vindo pra me pegar, tento correr, mas é inútil, tudo era inútil naquele momento. Sou pega e tento me debater, tudo que consigo é encontrar os olhos dele, que agora me olham, posso ver sua luta em não vir até mim, sinto que ele quer vir. Algo acontece, pois minha visão começa a escurecer.
E dessa vez, não era sonho.

A PassageiraWhere stories live. Discover now