SETEMBRO, 03. 2014.

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O quanto ele teria tirado dela? Para que tivesse permanecido acamada por três dias, com o corpo gelado mesmo que debaixo de grossos cobertores, mesmo com o aquecedor a fazendo suar.

Ela precisou mentir para Lizandra. Era apenas uma gripe, falou.

Chovia lá fora, quando havia dito isso. Selena pensava que era uma boa mentira. Contudo, era terrível não poder contá-la para si mesma. Ela podia se lembrar dos dentes dele perfurando-a, como se fosse feita de seda fina e desgastada, como se sua pele e seus músculos não fossem barreira para o desejo dele. Ele a consumiria por inteiro, se ela não tivesse cuidado.

No tédio do quarto dela, Selena relia Drácula pelo computador. Ela precisava entender o que acontecia, e nada melhor do que procurar respostas na fantasia.

Supostamente, o homem que a atormentava não deveria existir. Supostamente, Drácula deveria ser apenas mais um livro fantástico, com criaturas absurdas que serviam apenas de metáfora para a humanidade. Supostamente, ela deveria estar se divertindo. Mas ela continuava a riscar passagens com o marcador amarelo do aplicativo. Deveria existir alguma verdade ali, talvez fosse isso que Bram Stoker estivesse tentando realmente dizer por todos esses anos. Ela estava escutando agora, melhor, lendo, com a devida atenção e crença de que havia criaturas que se escondiam do sol e que viviam do sangue que escorria pelo sexo das mulheres.


***

– Boa noite! Está melhor? – Lizandra falou.

– Sim, acho que irei para a aula amanhã.

Lizandra demorou-se na soleira da porta, mordiscando o lábio. Ela resolveu entrar, caminhou rápida até a cama e jogou-se do lado da amiga. Selena desviou os olhos da tela do notebook em seu colo.

– Eu peguei as anotações com a Hannah hoje!

Selena acenou, distraída. Ela fechou a tela do notebook e o colocou de lado.

– O que você estava lendo? – murmurou Lizandra.

– Drácula.

– Sério? Eu não pensava que você gostasse desses livros sobre vampiros.

– Eu gosto. Mas sobre o que você quer falar? Eu sei quando você está enrolando para dizer algo.

– Você me pegou – riu sem humor. – Eu acho que amo a Hannah.

Selena fingiu surpresa. A verdade era que qualquer pessoa que observasse as duas juntas por meros segundos poderia deduzir o afeto sincero que existia entre elas. E Selena já havia as observado demais para se sentir contagiada pelo sentimento.

– Conte para ela – murmurou, virando-se de lado para encarar a amiga. Lizandra tinha olhos cravados no teto, um semblante preocupado no rosto e mãos que apertavam as suas roupas com força desnecessária. – Eu tenho certeza que ela sente o mesmo por você. Vocês são exatamente o modelo de casal que todas as pessoas almejam ser.

Lizandra riu, finalmente. Ela virou-se de lado também, colocando as mãos debaixo da cabeça.

– Eu sei que ela gosta de mim, mas... Você sabe que não foi exatamente fácil aceitar que eu sentia atração sexual por mulheres. E pensar que eu poderia amá-las era um conceito ainda mais absurdo. Esse lance de namoro ainda é novo para mim, e eu tenho medo de estragar a nossa relação precipitando as coisas.

– Então você também a quer pedir em namoro?

– Eu a amo! E se tenho certeza de alguma coisa, é que eu sou uma garota monogâmica.

– Você não vai estragar nada, Liz. Apenas vai dizer o que sente. Na pior das hipóteses, a Hannah vai dizer "obrigada" – brincou sem humor. Ela ainda se sentia fraca e cansada, mais ainda confusa.

– Não brinque com isso! – Liz empurrou de leve o ombro da amiga. Ela revirou-se na cama, soltando um suspiro penoso. – Eu direi para ela, eventualmente.

– Não precisa ficar com medo. Eu tenho certeza que ela te ama também.

Lizandra bufou.

– Você sabe... Não é fácil! Você já tentou explicar para alguém o quanto amava essa pessoa?

Selena considerou a pergunta.

Ela havia pensado em dizer o quanto amava um garoto certa vez, ele fora seu primeiro namorado. Mas ela sempre prendeu essa verdade como um mistério valioso. Se ela o perdesse, não teria nenhuma moeda de valor para pressioná-lo a ficar na relação conturbada que os dois mantinham.

– Uma vez. – Selena admitiu. – Eu não faço o tipo de menina romântica.

Ela o havia dito apenas uma vez, eventualmente. E tinha se sentindo como se tivesse arrancado um membro do seu corpo e o oferecido ainda sangrento e dolorido para o garoto. A adolescência não foi o momento mais brilhante da sua vida.

– Como foi?

– Como eu disse? – Lizandra confirmou. Selena tentou se lembrar daquele ingrato momento. Era tarde na madrugada, e ela estava bêbada, com o cheiro de cigarro impregnado em seus cabelos e nos espaços entre as unhas pintadas de preto. – Eu não sei. Não foi nada especial, sabe? Eu pensava que ele nem se importava comigo... Estava chovendo, e nós estávamos muito bêbado. Eu tinha acabado de brigar com a minha mãe pelo celular, eu pensei que poderia fugir com ele e nunca voltar para casa. Foi a primeira, naquela noite, em que ele me beijou na frente dos seus amigos, e nós estávamos juntos por meses já... A gente dormiu na mesma cama, abraçados, na casa de um amigo dele. E eu só disse. Eu pensava que ele estava dormindo, por isso eu disse.

– Ele escutou?

– Sim... Mas ele só admitia isso quando nós brigávamos. Ele usava isso para jogar na minha cara que eu era fria e indiferente, que eu não merecia o amor dele.

– Sinto muito. – Lizandra parecia infeliz, de fato. – Eu imagino que foi um relacionamento complicado.

– Complicado nem começa a descrever... – Selena suspirou, revirando os olhos para a janela aberta. Lá fora, a lua estava cheia, um grande ponto brilhante no céu noturno. – Eu não acho que me interesso por relacionamentos fáceis, como o seu.

– Você acha que o meu relacionamento com a Hannah é fácil?

– Vocês se apaixonaram praticamente à primeira vista, eu juro. Vocês sempre foram gentis uma com a outra, e respeitaram o tempo e o espaço de vocês. Ela nunca a pressionou, e você sempre compartilhou da sua vida com ela tão fácil e rápido, como se já se conhecessem há anos.

– Eu sempre fui assim como qualquer pessoa!

– É diferente com ela. Eu não explicar, mas é diferente. Você não tem medo de ser vulnerável com ela.

– Se você quer construir um relacionamento saudável com alguém, é necessário se permitir ser vulnerável. Ou você ficará apenas presa atrás dos seus muros, e nunca se permitirá se envolver de verdade.

– É fácil falar...

Selena havia aprendido cedo a guardar suas vulnerabilidades numa caixa apertada e a escondê-la num lugar tão profundo, que se esquecesse que um dia tal caixa existiu.

– É difícil, mas... Eu sempre pensei que é melhor errar do que nunca tentar.

– Às vezes, você pode se machucar terrivelmente por tentar.

– É uma coisa boa que você tenha uma amiga tão incrível quanto eu para ajudá-la a se recuperar de um macho babaca!

Selena riu, mas o som parecia seco para os seus ouvidos. Esperava, ao menos, que Lizandra acreditasse.


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Para mim, esse diálogo diz muito sobre quem a Selena é. Não o tipo de garota meiga, mas o tipo que ficaria curiosa - não assustada - ao se deparar com um homem nas sombras do seu quarto. Mas o que vocês acharam? 

A SIDE: SELENA // Under Your Skin //Onde as histórias ganham vida. Descobre agora