ABRIL, 2014.

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Quando escolhera estudar em Berlim, estivera mais ansiosa com as possibilidades de conhecimento que poderia aprender. Pensara pouco, quase nada, sobre a cidade e seus habitantes. A maioria era branca, julgara. Numa cidade de céu cinza, torres de vidro e vegetação meticulosamente aparada. Fizera alguma pesquisa, óbvio que não chegaria em uma nova cultura sem saber regras básicas de convívio social, ou como pedir por água e comida. Marcara alguns museus e pontos turísticos que gostaria de conhecer. Museu de Pérgamo, com sua escada de mármore branco monumental e seus artefatos de culturas distantes, vagamente esquecida pelo aceleramento da vida moderna. O Memorial dos Judeus Mortos na Europa, sua atmosfera sombria e lúgubre, que lhe fazia pensar em uma cidade fantasma habitada por pedras e por lembranças. O Museu Alemão de Tecnologia ou Deutsches Technikmuseum Berlin, um trava língua em outra língua, com seu maquinário revolucionário, outros artefatos que ficaram na história. A Hansabibliothek, um lugar que desafiava seu imaginário, um bloco retangular que escondia árvores, livros e quietude em meio ao tráfego de uma cidade superpovoada.

O que ela não esperava, contudo, era se deparar com uma cidade construída no limiar impreciso entre hipermoderno e histórico. Catedrais com seus picos reluzentes que surgiam por trás de lojas de conveniência; e blocos de vidros que cresciam ao céu, ao redor de uma praça florida e casas que assistiram ao declínio e à ascensão de mentes brilhantes e horrendas mais de uma vez. Castelos defrontados às avenidas em que carros voavam sobre o asfalto, luz neon caindo em estátuas de deuses que sobreviveram ao imaginário e à corrosão do tempo. Resquícios do muro que dividira um mundo pintados, agora, em grafite, com odes por vezes onírica, por vezes crítica de uma história que se contradiz por se repetir incessantemente. Memórias gravadas nas calçadas, nas ruas, nas praças: Berliner Mauer 1961 - 1989.

Como poderia não ter percebido a mágica de Berlim? Os ramos das árvores que se inclinam sobre muros, estátuas de ouro que brilham elevadas ao céu, ruas que levam de um século ao outro na volta de uma esquina, escadas que descem a um submundo habitado por criaturas noturnas que fazem arte e que dizem verdades de um tempo passado e presente e futuro, o mistério delirante da luz neon advertindo os aventureiros dos perigos à frente e seduzindo-os às suas sombras do mesmo jeito; o reflexo distorcido num vidro iluminado pela chama de um isqueiro aceso muito cedo ou tarde num dia ou pela luz saindo da boca de carros eletrizados, um rio que se alarga até o infinito, pássaros que vieram de outros países trazendo suas músicas e o cheiro inegável de algo que não pertence, mulheres negras inertes à espera do beijo que as libertará de seus sonhos de mil e um anos, cafeterias que possuem diferentes relógios que nunca marcam a hora correta, bosques em que podem ser avistadas luzes trêmulas sob o olhar e uma música que parece se alongar para dentro da casca grossa e das folhas mortas, fantasmas que vivem em casas, casas que habitam fantasmas, noites que duram dias, feixes de sol que surgem de súbito contra a vegetação de prédios.

A cidade parece um ser vivo, fantasmagórico, gemendo ruídos por atenção. Parece que o ar vibra com a sua força, o tempo passa diferente dependendo da localização em que se está, nuvens permanecem inertes, o frio era uma força por si só, amarrava-se nos órgãos e cultivava estalactites nos sonhos.

Há flores em todos os lugares, nas avenidas, nas casas, até mesmo adornando departamentos formais. Isso a ajudava relevar o frio, mas em dias em que a chuva chegava sem aviso, Selena transbordava de saudades de sua terra natal, onde todos os dias pertenciam ao sol.

A SIDE: SELENA // Under Your Skin //Onde as histórias ganham vida. Descobre agora